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Bem-vindo à Terra do Nunca

Bem-vindo à Terra do Nunca

Não é controlável. Publicamente somos, sempre, o que as circunstâncias fazem de nós. Viver de acordo com a forma como as pessoas nos percepcionam passou a ser o novo normal. O que dizem é, para muitos, tão ou mais importante de quem somos realmente. É uma nova Era. A do artificial e efémero, mas, infelizmente, também do umbiguismo e do pedantismo.

A história ensinou-nos que os enfermeiros são, ora vilões, ora heróis. Vivam com isso! É o que somos para quem não precisa, naquele momento, de nós. A verdade é que, como canta Fausto, só "depois do barco virado" se ouvem "grandes urros e gritos, na salvação dos aflitos".

Nestes dois últimos penosos anos fomos aquilo que escolhemos ser, cumprindo a condena que nos quiseram dar. A retaguarda do SNS passou à linha da frente. Os que quiseram dedicar a vida a cuidar dos outros, foram forçados a tratar sem cuidar. Mais importante que confortar era fazer sobreviver. Foram horas e dias, com fatos que simulavam o calor do inferno e máscaras apertadas, tanto quanto possível, na esperança de não levar o problema para casa. Famílias afastadas, crianças apartadas do colo dos pais e uma sonorosa solidariedade que nos chegava pelas janelas. Palmas que embrulhavam um reconhecimento público que a política não quer saber.

Cumprimos. Cumprimos a missão de não deixar ninguém sozinho e salvámos todos quantos pudemos, vacinámos todos os que quiseram, trabalhámos dias a fio sem uma queixa e com o coração nas mãos. Vivemos vidas que não eram nossas e levou-nos um pouco da nossa, cada um que perdeu a sua.

A pandemia foi tão severa com os enfermeiros que aconteceu o que nunca havia acontecido. Uma união, sem precedentes, de todos os sindicatos de enfermagem, com perspectiva de negociação de uma carreira com o governo. Os sindicatos não passaram da porta do Ministério da Saúde, o ministério que é gerido por uma pessoa que um PS de enxovalho e sem memória, quer ver a substituir António Costa. Não receber os enfermeiros não é pose de estadista, é pose de utilitarista. É ser desleal a quem nunca faltou. É ignorar aqueles que já não são tão precisos.

Hoje dar-se-á uma grande manifestação em frente à Assembleia da República, durante a votação do Orçamento de Estado, que os economistas dirão se é bom ou mau para o país, do ponto de vista macro. Eu, enquanto dirigente da Ordem dos Enfermeiros, não devo pronunciar-me sobre a carreira ou as dotações destinadas a salários que o OE contempla. Mas jurei garantir a qualidade dos cuidados de enfermagem.

Ficar calado perante um atentado à dignidade profissional dos enfermeiros seria compactuar com um erro estratégico que não só fará muitos enfermeiros partir para países com condições sócio-económicas mais justas, como mina a confiança das gerações futuras na profissão. Este é o primeiro passo para fazer da mais nobre das profissões, uma das menos desejadas. É mesmo isto que, enquanto país, queremos?

É hora de entender que não somos como nos idealizam. Somos, seremos o que deixarmos que façam de nós.

*Presidente da Secção Regional do Norte da Ordem dos Enfermeiros

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