eco.sapo.ptRicardo Arroja - 27 out. 07:51

O fim de um ciclo?

O fim de um ciclo?

As eleições serão um momento de clarificação e se o BE e o PCP saíssem penalizados já seria um avanço. Quanto ao OE2022, não será dramático se tivermos de esperar uns meses até à sua aprovação.

A geringonça morreu? Parece que sim e, salvo golpe de teatro de última hora, o Parlamento será mesmo enviado para casa, remetendo Portugal para eleições antecipadas. Trata-se de um desenlace que não deixa de causar alguma estranheza. Passaram-se apenas algumas semanas desde que o debate orçamental teve início e de um prognóstico inicial em que a aprovação da proposta do Orçamento do Estado para 2022 (OE2022) seria um passeio no parque passou-se ao cenário oposto. Será isto a vitória da irracionalidade sobre a racionalidade políticas (como lhe chamou o comentador e conselheiro de Estado Marques Mendes)? Ou haverá algo mais a explicar o volte-face das últimas semanas? Mais ainda, será mesmo o fim da geringonça, ou será antes uma oportunidade de renovação do próprio PS antes de uma geringonça remodelada?

As medidas anunciadas nos últimos dias pelo Governo, a fim de pacificar a esquerda, mostravam um executivo completamente à deriva. Nas questões laborais, introduzidas no debate orçamental por força da pressão política do BE e do PCP, os últimos anúncios foram mesmo completamente incoerentes face aos desafios do país. Por exemplo, a proposta de aumentar as indemnizações compensatórias por despedimento aos contratados a prazo teria resultado numa ainda maior segmentação do mercado de trabalho – um absurdo num país tão criticado pela segmentação do trabalho. Já a proibição do recurso à subcontratação de pessoal por parte de empresas que tivessem antes realizado despedimentos colectivos teria inviabilizado a flexibilidade que, em casos-limite, permite a reviravolta de empresas em dificuldades, mas viáveis – outro absurdo num país em que os zombies são mais que as mães.

O OE2022 vai assim morrer na praia e não será por razões apenas estritamente orçamentais. Será também por divergências políticas entre os parceiros de geringonça, em que salta à vista que, mesmo depois de 6 anos de convivência governativa com o PS, o BE e o PCP continuam a ser partidos subversivos. A subversão, neste caso, estará na incapacidade de aceitar os ditames de política pública que a Europa nos vai impondo, em troca da generosidade de que Portugal cada vez mais depende. Que ditames? A centralização da política orçamental, por um lado, e as reformas estruturais, por outro. No final da discussão, fica a ideia de que o BE e o PCP estariam mesmo convencidos de que seria possível revogar a reforma laboral de 2012, implementada com o apoio e beneplácito da troika (UE incluída). Santa ingenuidade. Ao mesmo tempo, também não se percebe – suspeita-se, mas não se percebe! – o que fariam de diferente o BE e o PCP com o dinheiro da Europa.

A inexistência de um orçamento aprovado manieta o Governo, mas não o bloqueia completamente. De acordo com a lei de enquadramento orçamental, “Durante o período transitório em que se mantiver a prorrogação de vigência da lei do Orçamento do Estado respeitante ao ano anterior, a execução mensal dos programas em curso não pode exceder o duodécimo da despesa total da missão de base orgânica, com exceção das despesas referentes a prestações sociais devidas a beneficiários do sistema de segurança social e das despesas com aplicações financeiras” (artigo 58º, nº4). Todavia, mesmo sem orçamento aprovado, o Governo mantém a capacidade de “a) Emitir dívida pública fundada, nos termos previstos na respetiva legislação; b) Conceder empréstimos e realizar outras operações ativas de crédito, até ao limite de um duodécimo do montante máximo autorizado pela lei do Orçamento do Estado em cada mês em que a mesma vigore transitoriamente; c) Conceder garantias pessoais, nos termos previstos na respetiva legislação” (artigo 58º, nº5).

Mas como fica a execução do PRR enquanto não houver OE2022 aprovado? De acordo com o último decreto-lei de execução orçamental aprovado, que data de 28 de Junho de 2019 (!), o Governo pode gerir de forma flexível os fundos disponíveis no seio de cada programa orçamental (artigo 8º). No entanto, só a Assembleia da República poderá deliberar o aumento dos limites de despesa de cada programa orçamental. No primeiro caso, trata-se de alterar a operacionalização da política (antes) definida. No segundo, trata-se de definir uma nova política (orçamental).

Assim, no caso da despesa a realizar no âmbito do PRR através de entidades do sector público, poderão existir algumas perturbações caso os duodécimos mensais e a referida flexibilidade orçamental não permitam a execução da despesa pública na medida do previsto no PRR. Já no caso da despesa do PRR realizada através de entidades privadas não se vislumbram problemas afins. A eventual rigidez de gestão no sector público seria até um motivo para priorizar o sector privado na execução inicial do PRR, através do pré-financiamento de 2.200 milhões de euros já recebido pelo Governo em Agosto deste ano.

O PRR português está aprovado pela UE e em 2022 prevê-se uma execução de 4.000 milhões de euros, ou seja, 25% do total a executar até 2026. Bem ou mal, não se afigura grande margem de manobra na sua eventual renegociação, até porque nesta altura já estão assinados (ou em vias de serem assinados) contratos que vão absorver quase 80% do total de fundos do PRR. Nesta matéria, o Governo que vier a seguir a este terá de (com)viver com o legado deixado pelo PS. Na verdade, o desafio, deste ou do próximo Governo, é melhorar a capacidade de execução dos fundos, ultrapassando as lacunas que ainda esta semana o Tribunal de Contas identificou na execução do Portugal 2020. Que lacunas? Execução lenta, baixa absorção dos fundos, incumprimento de objectivos intermédios em muitos programas, fraca orientação pelos resultados, e agora, depois das recentes alterações às regras de contratação pública, também riscos acrescidos de fraude na utilização dos fundos.

O legado político, orçamental e económico da geringonça é fraco. Sob a sua governação, o país tem caminhado para a cauda da Europa – custa admiti-lo, mas é o que resulta dos números e da emergência dos países de leste e dos bálticos –, com uma carga fiscal excessivamente elevada, serviços públicos ineficientes, baixa capacidade de investimento, e uma enorme dependência face aos fundos europeus.

As eleições serão assim um momento de clarificação e se o BE e o PCP saíssem penalizados já seria um avanço. A dependência face a forças partidárias que são contra a economia de mercado, contra a Europa e que, pelo contrário, são a favor de ideologias que nunca funcionaram em parte alguma do mundo, é um risco do qual o país faria bem em afastar-se.

Quanto ao OE2022, não será dramático se tivermos de esperar uns meses até termos orçamento aprovado. Mas dada a natureza essencial do PRR para financiar o investimento em 2022, e a influência que o sector público previsivelmente terá na sua execução, convinha que o tempo de espera não fosse demasiado longo. É o mínimo que se exige aos partidos.

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