eco.sapo.ptGuilherme Dray - 26 out. 13:00

Agenda Para o Trabalho Digno: A aparição das ‘social clauses’

Agenda Para o Trabalho Digno: A aparição das ‘social clauses’

As 'social clauses', que até agora dependiam mais da responsabilidade social das empresas e da sua aceitação voluntária, ganham agora espaço na lei estrita com a Agenda do Trabalho Digno.

No passado dia 21 de outubro o Governo aprovou duas iniciativas legislativas com particular relevância em matéria laboral: uma proposta que altera o Código do Trabalho, sob o signo da Agenda do Trabalho Digno, e o Estatuto do Profissional da Cultura, o primeiro documento desta natureza alguma vez aprovado no nosso país e que é um passo em frente na dignificação do setor da Cultura e na valorização dos seus profissionais.

As iniciativas em causa revelam que o reforço do combate à precariedade laboral, em benefício de relações laborais dignas, estáveis e mais justas, continua a estar na agenda do dia.

No caso da Agenda do Trabalho Digno, em particular, há várias propostas que avançam nesse propósito de valorização do trabalho, na linha da Agenda do Trabalho Decente defendida pela OIT. A título meramente exemplificativo, recordam-se algumas:

  • Reduz-se o número de renovações (de 6 para 3) do contrato de trabalho temporário, estabelecendo-se que a duração total das renovações não pode exceder a do período inicial do contrato;
  • Esclarece-se que a ação especial de reconhecimento de contratos de trabalho também abrange as situações em que o prestador de serviço atua enquanto empresário em nome individual;
  • Alarga-se para 24 dias a compensação em caso de cessação de contrato a termo, como forma de incentivar a contratação sem termo;
  • Repõem-se os valores de pagamento (mais elevados) do trabalho suplementar que estavam em vigor até 2012, a partir das 120 horas anuais;
  • Clarifica-se que o âmbito de aplicação do período experimental para trabalhadores à procura do primeiro emprego é limitado aos que não tenham tido contratos a termo de 90 dias ou mais na mesma atividade e estabelece-se que o prazo de aviso prévio para denúncia do contrato para este grupo de trabalhadores, depois de decorridos mais de 120 dias, passa a ser 30 dias;
  • Cria-se uma nova presunção de laboralidade para o trabalho nas plataformas digitais, no âmbito da relação entre os operadores de plataformas e quem lhes presta atividade;
  • Estabelece-se um novo dever de informação sobre a utilização de algoritmos e mecanismos de inteligência artificial quando estes possam afetar a tomada de decisões sobre o acesso, as condições de trabalho e a manutenção do emprego;
  • Renova-se até 2024 a suspensão dos prazos de sobrevigência das convenções coletivas já em vigor;
  • E alarga-se a contratação coletiva aos trabalhadores em outsourcing que trabalhem mais de 60 dias na empresa e aos trabalhadores independentes economicamente dependentes.

Em suma, a proposta de lei em apreço está claramente centrada na dignificação do trabalho, tal como sucede, de resto, com o Estatuto dos Profissionais da Cultura. Mais do que isso, é uma proposta que já traz soluções para alguns dos problemas tipicamente associados ao Futuro do Trabalho, como sejam o trabalho nas plataformas digitais e a utilização de algoritmos e da Inteligência Artificial no mundo do trabalho.

Mas o que é verdadeiramente inovador, é a inserção daquilo a que os anglo-saxónicos chamam de 'social clauses', à margem da legislação laboral.

Com efeito, uma das linhas que têm sido avançadas, em termos académicos, para promover a cidadania no trabalho, passa pelo aprofundamento destas matérias à margem da legislação laboral. Ou seja, há quem defenda que a promoção do trabalho digno pode ser feita, não apenas na legislação laboral, mas também nas 'procurement laws', através da criação de regras de contratação pública que incluam requisitos de 'labour compliance'.

Por outras palavras: ao privilegiar as empresas que cumprem as normas laborais, as leis de contratação pública podem dar um bom contributo (indireto) para a dignificação do trabalho e para a adoção de 'labour standards'.

Trata-se, em suma, de uma forma de incentivar as empresas, em nome da responsabilidade social, a assumir o cumprimento das normas laborais como um imperativo de boa gestão empresarial.

Portugal deu um passo em frente nesse sentido.

A reforma agora aprovada –- “Agenda Para o Trabalho Digno” –- contém pela primeira vez, de forma ambiciosa, estas 'social clauses', estabelecendo-se que o acesso por parte das empresas a apoios públicos, incentivos financeiros e a fundos europeus de valor superior a € 25 000,00 fica sujeito à verificação específica da observância da legislação laboral.

Mais do que isso, majoram-se os apoios públicos às empresas com contratação coletiva recentemente aprovada, há menos de três anos.

Por outro lado, em sede de contratação pública, estabelece-se que as entidades públicas adjudicantes podem, nomeadamente nos setores em que o custo fixo do trabalho é determinante na formação do preço contratual, solicitar documento demonstrativo da estrutura de custos do trabalho necessária à execução do contrato.

E estabelece-se, também, que nos contratos de concessão de duração superior a um ano os trabalhadores afetos à sua execução devem estar vinculados por contrato de trabalho sem termo e que nos contratos de concessão com prazo inferior a um ano os contratos de trabalho dos trabalhadores afetos à sua execução, podendo ser a termo, devem ter uma duração não inferior à do prazo de execução do respetivo contrato de concessão.

Ou seja, no respeito pelos princípios de Direito da União Europeia, caminhou-se no sentido do aprofundamento das regras de compliance laboral, ainda que por via indireta. Não através da lei laboral, mas sim por via das regras de contratação pública, nomeadamente através da alteração do Códigos dos Contratos Públicos.

As 'social clauses', que até agora dependiam mais da responsabilidade social das empresas e da sua aceitação voluntária (soft law), ganham agora espaço na lei estrita (hard law).

A complementaridade de regimes em torno da cidadania no trabalho torna-se evidente: para além da aplicação das leis do trabalho e das iniciativas empresariais em matéria de compliance laboral, chegou a vez de as leis de contratação pública darem também o seu contributo para a dignificação do trabalho.

PS: À data em que este artigo foi escrito, tudo aponta para a não aprovação da Lei do Orçamento do Estado, pelo que se desconhece ainda o destino do projeto de lei acima analisado.

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