eco.sapo.ptJosé Conde Rodrigues - 25 out. 10:32

A grande ilusão

A grande ilusão

Afinal das contas, são os países com maior estabilidade legislativa, aqueles que mais valor dão à perenidade do seu direito e da sua justiça.

Existe um impasse na aprovação do Orçamento do Estado e logo o governo avança com um pacote legislativo para ocupar o espaço público mediático. Surge um qualquer percalço inesperado no dia a dia do sistema judicial e eis que todos clamam por uma alteração à lei. O clima aquece, o combustível sobe de preço, avança-se com uma reforma legislativa para forçar todas as transições, mais ou menos sustentáveis, robustas e resilientes, para usar as palavras da moda. E assim se vai alimentando a grande ilusão de que se resolvem todos os problemas, mudando a realidade por decreto.

É certo que os sistemas jurídicos evoluem, devem ser flexíveis para acompanhar a realidade que regulam, mas não de forma constante, frequentemente contraditória, como acontece entre nós. É certo, também, que muitas mudanças resultam, hoje, da mesma senha híper regulatória, oriunda da União Europeia ou de outras organizações internacionais de que Portugal faz parte. E também é salutar que cada maioria, cada governo, tenha legitimidade para aplicar o seu programa, as suas ideias e assim satisfazer a sua base eleitoral.

Porém, numa democracia estável, madura, têm de existir áreas mínimas de entendimento, sem precisar de uma pequena revolução legislativa. O conflito e a divergência, são salutares em democracia, mas não é razoável, nem sustentável, existir um dissenso sobre tudo, a todo o momento, sem sopesar os custos ou benefícios de cada solução para o bem comum.

Falamos daquilo que John Rawls designava como consenso por sobreposição, baseado na razão pública, ou Jurgen Habermas designa por núcleo de deliberação democrática, comunicacionalmente alcançado na esfera pública, qual espelho duma sociedade pluralista e emancipada.

Só que, entre nós, estamos quase sempre perante uma verdadeira teia, onde constantemente se perdem os cidadãos e as empresas. Para estes, não há certeza ou segurança jurídica, face à contínua cirrose legislativa. Os próprios intérpretes e aplicadores da lei, quer na administração, quer nos tribunais, não tem tempo para respirar ou aprender o Direito, muito menos para aperfeiçoar e consolidar as suas posições sobre cada tema ou instituto jurídico.

Já o saudoso professor Sousa Franco, nas suas Lições de Direito Financeiro e Finanças Públicas, concluía que em Portugal a pior instabilidade é a das leis. Ou seja, quase sempre incapazes de lidar com a gestão de situações complexas de forma racional e desapaixonada, através do rigor, da disciplina e do saber fazer, encontramos nas mudanças da lei a panaceia, a bala de prata, para resolver os nossos recidivos problemas estruturais. Perante uma dificuldade, face a uma necessidade de reestruturação ou reforma de qualquer sector público ou privado, aprova-se nova legislação ou propõem-se mesmo alterações à lei fundamental, a Constituição da República.

Alguém se lembra, por exemplo, de perguntar pela saudável medida anunciada por diversos governos de avaliar o impacto de cada reforma legislativa, bem como a redução do número dos conselhos de ministros onde se aprovam novas leis?

No fundo, que país aguenta, que economia aguenta, que investidor aguenta, que contribuinte aguenta, que famílias aguentam, a constante alteração dos regimes legais, a frequente incoerência entre modelos educativos, judiciais, fiscais, laborais, de incentivos ao investimento, da gestão dos fundos europeus, sempre a recomeçar do zero, sempre com custos acrescidos para o contribuinte?

A mitologia grega legou-nos a figura de Penélope. Personagem do clássico grego de Homero, A Odisseia. Penélope passava o dia a fazer um sudário (mortalha) para Laertes, para o destruir durante a noite, e assim sucessivamente, enquanto aguardava pela chegada do seu amado, Ulisses, a ��taca.

A história de Penélope é a metáfora certa para explicar o nosso endémico frenesim legiferante, bem como a nossa propensão, de raiz napoleónica, para governar fazendo novas leis (recorde-se que Napoleão Bonaparte dizia que o seu grande contributo para a humanidade era o Code Civil de 1804). Nós gostamos de fazer e desfazer legislação, tantas vezes apenas, como Napoleão, para deixar uma marca pessoal, uma pequena pegada na História.

É tempo de mudar. Primeiro, é preciso levar a sério a avaliação do impacto de cada reforma legal em curso. Depois, é fundamental saber melhorar, corrigir, aperfeiçoar o que está mal. Por fim, é essencial saber esperar pelos resultados, ter uma visão de longo prazo e não apenas do efémero, qual modernidade líquida onde tudo é volúvel, solúvel, imediato, sem duração.

Afinal das contas, são os países com maior estabilidade legislativa, aqueles que mais valor dão à perenidade do seu direito e da sua justiça, que apresentam os melhores índices de desenvolvimento, contribuindo, desse modo, para o bem-estar dos seus cidadãos. Seria bom que, também nós, portugueses, conseguíssemos, finalmente, ultrapassar a grande ilusão legiferante criada pela síndrome de Penélope!

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