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Visão | Recordar Mário Castrim (1920-2002)

Visão | Recordar Mário Castrim (1920-2002)

A escritora Alice Vieira escreve, com Nelson Mateus, um diário sobre as suas recordações e sobre as memórias entre as diferentes gerações. O Diário de uma Avó e de um Neto, um projeto do site Retratos Contados
Querida avó,

Depois de tanto tempo de restrições, os ingleses, no início da passada semana, celebraram o “dia da libertação”. Viste a loucura que foi em bares, discotecas e afins? Acabaram-se as restrições, voltaram à vida normal. Não sabemos de que forma toda essa liberdade vai ter impacto na vida deles, e na de todos nós. Aliás, como temos visto ao longo destes meses, aquilo que se passa num país, rapidamente chega aos outros.

Estamos todos cansados disto tudo! Já não ouvimos o que dizem nas notícias. Cada vez se houve falar mais da variante Delta. A única Delta que quero no meu corpo, e em quantidades medicamente não aconselháveis, é a Delta de Campo Maior, do Comendador Nabeiro!

Segundo a reunião que existiu na semana passada, no Infarmed, com os próximos passos a dar, penso que não vamos ver a libertinagem, desculpa, a liberdade, que se viu em terras de sua Majestade. Penso que vai ser tudo faseado. Não vamos ter, de momento, o tão desejado “dia da liberdade” mas vamos tendo “dias de libertaçãozinha.

Como diria a avó Victória: “Temos que ver o copo meio cheio”.

Por falar em Liberdade, esta segunda, 2, foi o dia do 101º aniversário do Mário Castrim.

Um grande defensor da liberdade, que escreveu durante anos a fio nos tempos da censura.

Os mais velhos hão-de recordar aquele que é considerado por muitos, o primeiro crítico de TV que existiu em Portugal.

Mas Mário Castrim foi muito mais do que crítico de TV! Foi jornalista, escritor, teu marido, pai dos teus filhos, avô dos teus netos. Deixou uma vasta obra publicada e deve ser recordado no nosso Diário.

Como tal, deixo-te o desafio de escreveres sobre Mário Castrim. Decide se queres falar do profissional, ou do homem de que as más-línguas diziam que ias ser sua enfermeira.

O importante é recordar a pessoa que a maioria conhecia por Mário Castrim, mas que na verdade se chamava Manuel Nunes da Fonseca.

Em 2020, teríamos realizado diversas iniciativas para celebrar o seu centenário. Ver se organizamos essas comemorações este ano. Se os Jogos Olímpicos 2020 se realizaram-se 2021, assim como o Europeu de Futebol, o centenário do Mário também pode ser celebrado quando quisermos.

Mantém a tua Fé sempre em alta. Pensamento positivo. Com as medidas que estão a ser tomadas, até ao fim do Verão ainda vais conseguir ir beber uns copos e dançar no “Ouriço”.

Como tu sabes, motivos não nos faltam para comemorar.

Que o próximo mês nos traga mais liberdade. Temos uma exposição linda para inaugurar nessa tua Pátria.

Bjs

Querido neto

Fico contente por te lembrares do dia de anos de Mário Castrim, meu marido. Neste dia 31 de julho faria 101 anos.

Ainda para mais, estando eu a viver na Ericeira, uma terra que ele adorava. Viemos para cá em 1971, para uma casa muito pequena na Rua de Baixo – mas com um terraço magnífico diante do mar.

Mas para cá podermos estar, tínhamos um “anjo da guarda”… Chamava-se (e chama-se, que ainda é vivo) Lagariço e trabalhava nas camionetas da Mafrense, que saíam às seis da manhã para Lisboa. Então um pouco antes das seis horas ele ia a nossa casa, abria a porta (nesse tempo só fechávamos as portas de casa no trinco…) ia buscar o envelope com o texto para o “Canal da Crítica” e levava-o. Depois, em Lisboa, estava um estafeta do Diário de Lisboa que levava o envelope para a redação do jornal.

Ainda hoje as pessoas da Ericeira (sobretudo o Lagariço, e a Cândida, a mulher) me falam dele. E isso é bom.

Eu tinha 18 anos quando conheci o Mário. Eu costumava mandar uns textos para o jornal. Durante muito tempo ele respondia a dizer que aquilo era muito mau, mas que continuasse. (E estava cheio de razão…).

Mas um dia lá devo ter melhorado alguma coisa e ligou-me a dizer que fosse ter com ele ao jornal. E eu fui.  Ele estava no cimo das escadas que iam dar à redação.  E ainda hoje me lembro de ter subido as escadas e de pensar “está é a profissão que eu quero, e este é o homem que eu quero!”

E foi assim. Ele tinha mais 23 anos do que eu, e era casado (naquele tempo não havia divórcio). Foi a maior escandaleira neste país. Os meus amigos só me diziam “ ele é tão doente e com esta idade, vais ser enfermeira dele toda a vida”. Na verdade, ele era muito doente, tinha estado 10 anos num pulmão de aço no Sanatório do Outão—mas aconteceu exactamente o contrário: ele é que foi sempre meu enfermeiro…

As nossas famílias deixaram de nos falar. Quando a minha filha nasceu eu não tinha ninguém a quem a deixar para ir trabalhar. Então enfiava-a na alcofa e deixava-a na tipografia do Diário de Lisboa. O chefe da tipografia, Amadeu Ramires, era padrinho dela e tomava conta dela.

Mas, muitos anos depois, a minha tia só dizia “o Mário foi a melhor coisa que entrou na nossa vida.” E há gente da família dele que só há pouco tempo é que me fala. Há muitos anos, o Mário já tinha morrido, depois de ter passado 3 meses no hospital, onde ninguém da família dele o tinha ido ver nem sequer telefonado a saber notícias, a mulher do irmão mais novo ligou-me a dizer que o marido tinha morrido e a que horas é que eu queria que eles me viessem buscar.

“Buscar—para quê?”, perguntei eu.

“Então, para ir ao enterro”

Perdi as estribeiras, confesso.

“ Olhe, como sempre me ensinou o meu querido amigo Nicolau Breyner, “filho da puta vivo é filho da puta morto”

E desliguei.

(Por falar no saudoso Nicolau Brayner, se fosse vivo, teria feito ontem 81 anos).

A primeira mulher, que nunca aceitou dar-lhe o divórcio, um dia mandou o advogado dela dizer-me que se eu lhe desse 800 contos, ela aceitava. E eu respondi-lhe “eu não compro homens.” E por isso tivemos de esperar pela lei promulgada pelo Salgado Zenha, já depois do 25 de Abril.

Este diário já vai muito comprido, nas há só uma coisa  que eu queria acrescentar: o Mário foi sempre, até à hora da sua morte, um comunista convicto e um católico convicto. Coisa que poucas pessoas entendiam… A primeira prenda que ele me deu foi uma Bíblia, dizendo: “quando te sentires deprimida ou necessitares de um conselho, abre-a ao calhas e encontrarás sempre o que precisas.”

Ainda hoje faço isso. E é por isso que tenho uma enorme colecção de Bíblias…

E assim termina mais um mês.

Fica bem e aproveita Agosto

Bjs

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