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Pichardo: ″Tive um tio que morreu para salvar Che Guevara no Congo″

Pichardo: ″Tive um tio que morreu para salvar Che Guevara no Congo″

Entrevista originalmente publicada a 30 de setembro de 2018 e hoje republicada a propósito da medalha de ouro conquistada por Pedro Pichardo. Nesta entrevista ao DN, o atleta revela histórias de uma infância difícil e os tempos em que era obrigado a dormir na bancada do estádio, em Havana.

Pedro Pablo Pichardo é dos cinco atletas de sempre que superaram os 18 metros no triplo salto e já pensa em chegar aos 19 metros. Em maio bateu o recorde nacional, garante que se irá emocionar quando subir ao pódio como português e revela estar a aprender o hino. Não esquece as dificuldades que passou em Cuba e fala dos problemas com Nelson Évora.

Quais são as suas primeiras memórias de infância?
Era um miúdo muito intranquilo, não conseguia ficar quieto e os meus pais estavam sempre a chamar-me a atenção. Acho que foi isso que me ir para o desporto. Estava sempre na rua, a brincar com os amigos, jogávamos beisebol, futebol, às caricas...

Quando diz que jogava futebol, era futebol americano?
Não, não. Futebol europeu, púnhamos duas pedras a fazer de baliza e jogávamos na rua.

E marcava golos?
Não, nada disso. Eu era muito mau, era mais defesa.

Os seus pais trabalhavam?
O meu pai sempre trabalhou, era treinador de atletismo numa equipa em Santiago. A minha mãe tinha negócios próprios, vendia roupas na rua, bananas verdes, batata-doce, frutas, legumes... Era a forma de trazer comida para casa. Era uma vida difícil porque o rendimento era pouco e era preciso esperar pelo final do mês, pelo ordenado do meu pai.

O sustento da família era difícil?
Muito. Somos quatro irmãos, eu e três mais velhos, e só havia um ordenado que não chegava para tudo. Por vezes, o pequeno-almoço era pão com óleo e caf��, ao almoço a minha mãe fazia um ovo com arroz. Só ao jantar é que comíamos melhor, às vezes havia carne.

Chegou a passar fome?
Fome nunca passei, mas comia muito pão. Por vezes, além do pão, bebíamos água com açúcar.

"Não fiz o serviço militar porque passava muito tempo na Europa a competir. Desde os 18 anos chamaram-me todos os anos, mas estava sempre escondido"

Algum dos seus irmãos é desportista?
A minha irmã Roselena treinava corrida com o meu pai. Eu era pequeno e ela levava-me aos treinos, foi graças a ela que comecei no atletismo. O meu outro irmão, Jorge Andrés, o segundo mais novo, também fez atletismo por causa de mim: ajudou-me numa altura complicada, depois de uma competição em que me foi ver correr e eu fiquei em último. Agradeço-lhe muito os resultados que obtive, pois ele não fazia desporto e começou a treinar comigo para puxar por mim, para me ajudar.

E na escola?
Era bom estudante, gostava muito de escrever, mas era péssimo nas matemáticas... Aliás ainda sou. Coisas que metam cálculos não são para mim. Fiz toda a escolaridade e fiz um curso de professor de Educação Física. Não fui para a universidade, mas cá em Portugal quero tirar uma licenciatura para ser treinador de saltos, como o meu pai.

Pai travou paixão pelo boxe

Se não tivesse sido atleta de triplo salto, o que teria sido?
Teria ido para o boxe! Gosto muito. Quando era mais pequeno queria competir, mas o meu pai não deixou. Cheguei a praticar e ainda sei algumas coisas.

Muitos cubanos deixaram o país de forma clandestina para os Estados Unidos. Tens memórias disso?
Muita gente fugiu desde a década de 1950. Nos anos 1980 houve uma saída muito grande, a que chamaram Mariel. Ainda hoje há muita gente a fazê-lo e muitos morrem no mar. Chegam a colocar-se em cima de pneus e remam até alguma parte do mundo. Tive muitos amigos a fazê-lo. Houve uma altura em que ia sair com um dos meus melhores amigos, que agora vive nos Estados Unidos. Íamos para o México e depois tentaríamos passar a fronteira para os Estados Unidos. Ele foi e conseguiu, mas eu não porque para sair de Cuba tinha de ter feito o serviço militar obrigatório. Ele conseguiu um documento não oficial que lhe permitiu viajar para o México, mas eu não consegui esse documento por ser atleta.

Chegou a fazer o serviço militar?
Não fiz porque passava muito tempo na Europa a competir. Desde os 18 anos chamaram-me todos os anos, mas estava sempre escondido.

Tinha o sonho de ir para os Estados Unidos?
Sonho não, mas sempre gostei de fazer desporto e sempre pensei que lá poderia fazer atletismo ou boxe... Para mim era um país onde podia fazer desporto e só pensava nisso nessa perspetiva, pois não gosto da maneira como vivem os americanos.

Cuba é um destino turístico de eleição, mas como é a vida dos cubanos?
É muito complicada. Para os turistas nada falta, têm um mundo à parte em todos os sentidos. Para os cubanos, a comida é racionada para um mês através de uma caderneta de abastecimento. As famílias têm direito a quatro libras de arroz [1,8 quilos], três [1,3 kg] de açúcar, oito onças [220 gramas] de café... Quatro libras de arroz não chegam para todo o mês. Não há água potável e é preciso ir buscá-la a um cano. A água engarrafada é cara.

Quando era pequeno tinha a curiosidade de saber como era a vida fora de Cuba?
Claro. Não imaginávamos como era. Em Cuba, a internet é limitada, lenta e é difícil ter acesso. Como tal, é difícil saber o que se passa fora do país, até porque há muitos sites e páginas bloqueados pelo governo. As pessoas só sabem o que contam aqueles que chegam de fora.

"O meu tio Pio, que não conheci, morreu numa emboscada a Che Guevara, acabando por salvá-lo"

Ainda tem família em Cuba?
Tenho, está lá a minha mãe, os meus irmãos, tios...

É difícil comunicar com eles?
É um pouco difícil. A minha mãe tem 55 anos e para falar comigo tem de ir a um local ainda longe de casa para ter ligação... às vezes é perigoso por causa dos assaltos, pois sabem que ela está bem na vida, tem dinheiro.

Está a tentar trazê-la para Portugal?
Estou a tentar, mas não é fácil porque, pela forma como deixei Cuba, não posso utilizar qualquer documento para a tirar de lá, pois obviamente não vão deixar. Mas estamos a ver se a Puma, o meu patrocinador, ou Benfica podem ajudar.

Nunca acreditou em Fidel Castro

Chegou a conhecer Fidel Castro?
Nunca. Sou contra a revolução cubana. A minha família passou mal e essas coisas desencantaram-me sobre o presidente e quem o rodeava. Em 2012 comecei a ser atleta de elite em Cuba e passei a estar sempre na eleição para os melhores atletas de cada ano, várias vezes ganhei. A eleição era feita numa casa de Fidel, numa zona longe de Havana, e numa ocasião ele ia fazer um discurso e eu só cheguei depois de ele falar - até me chamaram à atenção -, porque nunca acreditei no que ele dizia, eram muitas mentiras. Sempre quis distância da política.

Teve um tio que combateu ao lado de Che Guevara no Congo nos anos 60?
Dois tios. O Pio, que não conheci, morreu numa emboscada a Che Guevara, acabando por salvá-lo. Conheci o irmão, Toi, que morava na casa onde nasci, e que vingou o assassinato de Frank País [revolucionário cubano que lutou contra a ditadura de Fulgencio Batista]. O governo de Fidel esqueceu tudo isso. E perto da casa onde vivia o meu tio Toi, e onde vive agora um dos meus irmãos, havia um túnel que ia dar ao cemitério, onde agora está sepultado Fidel Castro. Frank País, Che Guevara e outros guerrilheiros iam muitas vezes a essa casa visitar os meus tios e o túnel era para a fugirem se fossem alvo de alguma emboscada. O túnel ainda existe, tem desenhos nas paredes, mas fecharam-no quando foram enterrar Fidel.

Para si, esses tios são heróis?
Sim, claro! O Toi gostava muito de mim, levava-me para casa, dava-me caramelos... Ficou demente por causa de tudo o que viveu, passou a beber muito e chegou a uma altura que saía de casa e disparava tiros para o ar.... Mas sempre me tratou bem, era incrível, acho que eu era como um filho para ele.

Como começa a praticar atletismo?
A minha irmã Rosalena cuidava de mim e levava-me aos treinos. Aos 6 anos comecei por brincadeira e aos 7 passei a treinar corrida mais a sério. Só começo a fazer triplo salto com 14 anos em Santiago. Aos 18 fui para Havana.

Em Santiago tinha boas condições para treinar?
Nem pensar nisso! Eu treinava num campo de basebol, fazia exercícios na relva... pois não dava para fazer triplos. Não tinha ténis, nem roupa. Se não tínhamos comida em casa, como teríamos dinheiro para ténis? Corria descalço, ainda hoje gosto de fazê-lo.

Quando começou a participar em campeonatos de atletismo em Havana?
Aos 16 anos comecei a fazer viagens com o meu pai para ir lá competir. Íamos de comboio...

"Dormíamos nas bancadas do Estádio Panamericano e a Federação Cubana com quartos vazios para os atletas"

E havia dinheiro para as viagens?
Alguns amigos do meu pai, que tinham mais de dinheiro porque faziam coisas que não posso contar, emprestavam dinheiro para as viagens. De Santiago até Havana eram 18 horas e isto se o comboio não avariasse, como aconteceu uma vez e demorámos dias a chegar. Na capital, eles diziam que não era possível que eu treinasse num campo de basebol e estivesse no top de Cuba. Da primeira vez, não me queriam deixar competir descalço, então emprestaram-me um par de ténis. Senti-me esquisito porque não estava habituado, mas ganhei. No salto em comprimento fiz 7,12 metros e no triplo 15,45. Apesar dessas marcas, que já eram boas na altura, não me deixaram ir aos Jogos Olímpicos da juventude de 2010, em Singapura.

Porquê?
Diziam que, como eu estava em Santiago, não achavam possível que tivesse ganho a todos nos campeonatos. Os atletas de Havana eram privilegiados, porque estavam na equipa nacional.

Dormir nas bancadas do estádio

Durante os campeonatos em Havana onde ficavam?
Dormíamos nas bancadas do Estádio Panamericano e a Federação Cubana com quartos vazios para os atletas... O Alexis Copello, saltador que agora compete pelo Azerbaijão, ajudou-me bastante. Uma vez, deixou-me ficar no quarto dele, todos sabiam que eu estava lá, mas assim que ele entrou no táxi para ir para o aeroporto, porque tinha de vir para a Europa competir, foi uma pessoa bater à porta do quarto e dizer-me que tinha de sair. Outra vez, o Guillermo Martínez, do dardo, também me acolheu no seu quarto e entrou num conflito com toda a direção da federação, que até o queria castigar. Por isso, ficavámos na bancada... Levávamos cobertores para nos taparmos e dormíamos no chão.

O que comiam?
Havia uma cafetaria aberta 24 horas e comprávamos pão e um refresco que se vendia em sacos, que se chama Coral. O meu pai comprava três ou quatro, para eu ficar aconchegado, e ia competir.

Foi assim que começou um dos cinco saltadores do mundo que superou os 18 metros?
Nessa altura, o meu pai não dizia a ninguém que acreditava que eu ia fazer 18 metros, mas dediquei-me muito no treino. E uma das coisas que me fizeram alcançar essa marca foi essa dedicação. Na altura, já queria ser um dos melhores do mundo, mas não sabia se iria conseguir face às dificuldades por que passava.

Já deu para perceber que eram bastantes...
A propósito, lembrei-me de outra história. Numa das várias viagens de comboio de Santiago para Havana, com pouco dinheiro, ficámos em Santa Clara, fica a quatro horas de Havana, porque o dinheiro não chegou para a viagem toda. Depois fomos a pé, de madrugada, para a autoestrada, quando lá chegámos não havia ninguém, tinha havido um assalto a uma cafetaria e a polícia disse que era perigoso andar por ali. Às seis da manhã passou o autocarro para Havana, entrámos e o bilhete custava 60 pesos em moeda nacional (1,9 euros), mas nós só tínhamos 40 pesos (1,3 euros) para os dois. O cobrador queria que nós saíssemos do autocarro, mas o meu pai recusou e fomos até Havana, sem dinheiro. Alguns atletas acabaram por me ajudar, davam-me comida. Para regressar, apanhámos o comboio, sem dinheiro, o meu pai escondeu-se lá dentro, sem bilhete...

Nunca teve medo nessas aventuras?
Não, estava com o meu pai, sentia-me protegido, mas daquela vez na autoestrada tive um pouco de medo.

Sonho dos Jogos do Rio tornou-se pesadelo

Aos 21 anos fez a marca de 18,08 metros. O que sentiu nesse momento?
Sou um atleta que me caracterizo pela motivação. Se vou a uma prova e sei à partida que não há competitividade, acomodo-me, mas nas grandes competições foco-me mais porque os rivais são fortes. Um ano antes a federação tinha-me aplicado um castigo e impediram o meu pai de ser treinador em Cuba e isso motivou-me mais.

Porque foi castigado?
Porque até 2012 sempre treinei com o meu pai, mas em 2013 para que pudesse entrar na equipa nacional tinha de ter um treinador da federação. O meu pai afastou-se e eu fui para Havana. Comecei a treinar com Ricardo Ponce, mas desde o início os treinos não correram bem. Não tinha bons resultados. O meu pai foi então para Havana e treinava-me às escondidas. Acabei por ir ao Campeonato do Mundo de Moscovo, saltei 17,69 metros e conquistei a medalha de prata. Quando começa o ano de 2014, fui aos Mundiais de pista coberta na Polónia, davam-me como favorito, mas fui bronze porque tinha uma dor numa canela. O treinador queria que eu fizesse um tratamento caseiro com umas ligas para trancar o corrimento do sangue e depois tirava a liga e aumentava a circulação. Era uma experiência perigosa e expliquei isso à federação, pedindo por favor outro treinador.

"Na Vila Olímpica do Rio fiz um exame que mostrou uma fratura de 7,4 milímetros da fratura. O médico da federação cubana, que era amigo de Fidel, começou a falar-me de política e quis convencer-me que tinha de competir, senão castigavam-me"

Não aceitaram?
Disseram-me que era obrigatório continuar com ele. Então neguei-me a treinar e fui chamado a Alberto Juantorena, presidente da federação cubana que é também vice-presidente da federação internacional. Disse que ia resolver e que me ligava... até hoje. Voltaram a chamar-me para uma reunião com outros dirigentes e comunicaram-me um castigo por ausência do treino, quando dois dias antes tinha batido o recorde de uma competição, treinando com o meu pai. Levei seis meses de castigo. E o meu pai ficou impedido de voltar a exercer a profissão. A partir daquele momento tinha de trabalhar com um treinador de basebol. No final desses seis meses deram-me mais seis meses de castigo. Estive sem competir um ano. Só voltei em 2015, depois de treinar muito forte com o meu pai. E logo na primeira competição fiz 17,94 e bati o recorde de Cuba, que há 23 anos era de Yoelbi Quesada. Depois bati o recorde mais duas vezes, acima dos 18 metros. Voltaram então a mudar-me o treinador e as marcas voltaram a baixar. Foi então que sofri uma fratura de stress num tornozelo...

Foi por isso que não competiu nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro?
Sim. Eu estava a fazer um tratamento em Itália, mas a federação cubana não confiava em nenhum médico, alegando que os melhores médicos eram cubanos. Não acreditavam que tinha aquela lesão, nem com os exames e documentos que lhes mostrei. Não treinava há seis meses e queriam que competisse. Na Aldeia Olímpica fiz um exame que mostrou uma fratura de 7,4 milímetros. O médico da federação cubana, que era amigo de Fidel, começou a falar-me de política e quis convencer-me de que tinha de competir, senão castigavam-me. Nesse mesmo dia, como recusei competir, mandaram-me de volta para Cuba. Estava no quarto a fazer abdominais e bateram à porta a dizer que tinha de me ir embora naquele momento.

Se tivesse competido corria riscos?
Sim, o médico italiano disse-me que podia agravar o problema ou provocar outras lesões. Era muito perigoso, a minha carreira poderia estar em risco.

Objetivo: chegar aos 19 metros

Até que marca pensa chegar?
Quero saltar 19 metros.

É possível saltar 19 metros?
Eu penso que sim. Saltei 18 metros por duas vezes e a minha mente está maluca! Penso que se melhorar um detalhe no salto posso consegui-lo.

Qual é o detalhe?
[risos] É segredo!

Antes de cada salto, que pensamentos que lhe passam pela cabeça?
Eu foco-me na parte técnica e no que tenho de fazer em cada passo: na corrida, nos apoios e na chamada na tábua. Pensar no resultado é pensar ao contrário, porque há uma sequência de acontecimentos que te dão a marca. Há muitos atletas que pensam no resultado e esquecem-se do que têm de fazer para lá chegar. Eu sei que posso alcançar um bom salto se fizer bem o primeiro, o segundo e o terceiro passo.

A relação com o seu pai como treinador e como pai é diferente?
Ele é muito exigente. E morar com ele é terrível, está sempre a falar do treino, a ver os exercícios na televisão... Às vezes estou a jogar PlayStation e ele chama-me para ver um pormenor. Está sempre a procurar otimizar os resultados. Às vezes diz coisas e tenho de lembrá-lo de que não sou perfeito. Mas ele sabe conciliar a função de treinador e de pai. Quando não está a trabalhar nos treinos, no vídeo ou a estudar, comporta-se como pai.

Como foi planeada a sua saída de Cuba?
Estava tudo combinado com toda família, mas alguns não queriam que saísse porque seria obrigado a ficar oito anos sem entrar em Cuba. Mas tinha de o fazer porque nós estamos a trabalhar para eu ser o melhor do mundo, não é por dinheiro, como muita gente fala, até porque em Cuba eu estava bem: não vivia como um rei, mas tinha a minha casa em Havana, dois carros, uma quinta, um pequeno negócio... Saí de Cuba para demonstrar que somos os melhores no triplo salto. Viajei de Havana para Estugarda e lá um amigo, que me ajudou muito, fez trinta horas de carro com o meu pai da Suécia até Estugarda... só descansaram duas horas. E depois voltamos no mesmo dia para a Suécia, mais 30 horas de viagem. Na altura o meu pai estava a trabalhar num clube sueco há três anos.

Quando é que a Federação Cubana soube da sua saída?
Saí de noite do centro de treinos de Estugarda, onde eu, Dyron Robles e Yarisley Silva estavámos em estágio. E às 22.00 horas, depois do jantar com os meus companheiros, deixei a porta do meu quarto aberta e a chave na receção. Acho que só souberam no dia seguinte que me tinha ido embora.

Houve algum tipo de ameaças a si ou à sua família?
Não. A minha família em Cuba - não sei se é bom falar, mas pronto - é um pouco maluca [risos]. A polícia e as pessoas sabem como eles são, por isso é difícil fazerem-lhes ameaças. Eu tenho propriedades em Cuba que não me podem tirar, porque tinham de matar toda a família. Só Alberto Juantorena é que fez tudo para que eu não competisse.

É na Suécia que aparece o Benfica?
Eu treinava no clube sueco, que prefiro não dizer o nome, mas estava muito frio e neve em abril. Foi a primeira vez que vi neve. E era muito difícil treinar, apesar de ter um bom ambiente de equipa. Tinha um outro empresário de Portugal que conhecia o Benfica e colocou-me em contacto. Tinha outras possibilidades, de Espanha, Itália e Turquia. Pedi os detalhes de todas as propostas e cheguei à conclusão de que o melhor era vir para o Benfica. Não por dinheiro, porque outros clubes pagavam mais. Se fosse por dinheiro tinha ido para a Turquia ou para o Bahrein. Vim para Portugal por causa do idioma e do clima. A Turquia tem um ambiente instável... deixar Cuba e ir para a Turquia ia dar ao mesmo [risos].

Não conhecia o Benfica nem Portugal?
O Benfica conhecia pelo futebol, mas não sabia que tinha outras modalidades. De Portugal conhecia os atletas, Nelson Évora, Patrícia Mamona, e sempre ouvi falar que era um bom lugar para viver, mas nunca fiz buscas na internet para o confirmar. Agora sei que era verdade o que me diziam.

O hino e as emoções do pódio

E tem sido a adaptação a Portugal?
Tem sido boa, em muitos sentidos, apesar das saudades da família e dos amigos. Tive de adaptar-me à organização do desporto aqui, quando não me deixavam treinar porque não tinha documentos. Agora percebo melhor... Por exemplo, o meu treinador é que decide o tempo e os horários dos treinos e era difícil coordenar quando um centro diz que só tenho acesso das duas às três da tarde.

Esses problemas já foram ultrapassados?
Sim. Agora treino em Setúbal e estou contente ali. Tenho o meu espaço. No Estádio Universitário chegaram a assaltar-me o carro, no Jamor não me deixavam entrar com o carro no parque... diziam que não fazia parte da federação. No INATEL tive um problema com o segurança, estava tudo marcado para o ginásio e não me deixava entrar, acho que por ele ser de outro clube...

A sua mulher, Arialis Gandulla, também é atleta?
Sim, é atleta de 100 e 200 metros, esteve nos Jogos Olímpicos do Rio. Ela vai voltar agora, depois de ter tido a nossa filha, Rosalis Maria, há dez meses.

E vai competir pelo Benfica?
Não sabemos ainda. A única coisa certa é que vai voltar.

Como é o seu dia-a-dia?
É muito tranquilo. Eu sou uma pessoa que gosta de dormir muito. Às vezes acordo às 13.00 ou 14.00 e tomo o pequeno-almoço...

Está no fuso horário de Cuba...
[risos] É isso. Quando as pessoas estão a almoçar eu tomo o pequeno-almoço. De resto, gosto de fazer coisas em casa quando tenho tempo e também gosto de jogar PlayStation.

Conhece alguma coisa de Portugal?
Sim, fui à Arrábida nesta semana, conheço Belém, Sintra, o Algarve, que é o que mais gosto, pois é mais parecido com Cuba.

"Estou a praticar o hino. Não sei se fico em primeiro ou em último lugar, mas de qualquer forma o melhor é sabê-lo. Não é difícil, estou a aprendê-lo como uma canção"

E a comida?
É boa, tem bom tempero. Só não como bacalhau, não gosto.

Adquiriu a nacionalidade em novembro. O que vai sentir quando subir ao pódio com a camisola de Portugal?
Não sei o que vou sentir. Não quero imaginar, gosto mais de ser surpreendido pelos acontecimentos. Mas claro que vou emocionar-me... muito! De momento estou a praticar o hino...

Já sabe cantá-lo?
Ainda não, estou a praticar. Não sei se fico em primeiro ou em último lugar, mas de qualquer forma o melhor é sabê-lo. Não é difícil, estou a aprendê-lo como uma canção.

Quando subir ao pódio levará a bandeira portuguesa e a cubana?
Não. Só a de Portugal. Eu nasci em Cuba, mas a federação não se portou bem comigo. Portugal portou-se melhor comigo neste ano e meio do que nos vinte e tal anos que vivi em Cuba. Agradeço a Portugal, ao Benfica e aos adeptos que me deram esta oportunidade de representar o país e por me terem acolhido tão bem.

Já é reconhecido na rua?
Sou, mas não tanto como um jogador de futebol. Eu gosto assim, porque prefiro andar na rua tranquilo.

"Quebrou-se a confiança" com Nelson Évora

Tem havido algumas polémicas entre si e Nelson Évora. Recentemente estiveram juntos na Liga Diamante, tiveram oportunidade de falar?
Nós tínhamos uma relação de colegas. Conheci-o em competições, até que nos Mundiais de 2015 ele foi medalha de bronze e eu de prata. Nessa altura falámos muito, no pódio, na sala de imprensa e começámos uma boa amizade. Já em Portugal continuámos essa boa relação e falámos, mas quando tive a nacionalidade portuguesa, não sei o que se passou... de um momento para o outro ele bloqueou-me nas redes sociais. Eu faço o meu trabalho e ele o dele, não tem de haver qualquer conflito.

Mas conversaram?
A pista de aquecimento, que é onde habitualmente os atletas se encontram, era grande e cada um estava em seu lado. Quando estivemos juntos foi na zona de competição e não houve tempo para falar, não nos cumprimentámos. Acabaram os saltos, eu acabei por ganhar e ele não se aproximou de mim para me felicitar...

Acha que ele não aceita a sua naturalização?
Acho que não. Deve ser estranho porque foi um processo rápido, talvez ele esteja cuidando de algo que é dele, o título em Portugal e o estatuto, mas a vida é assim. Hoje estou eu, amanhã pode estar outro miúdo. Há que reconhecer que o tempo de cada um de nós vai passando, ninguém está na vida e no desporto para sempre e há que aceitar isso. O que se passa é que Portugal só teve quatro campeões olímpicos, um deles o Nelson, mas eu venho de Cuba, que tem muitos campeões olímpicos e mundiais, e lido melhor com isso... Acho que ele não estava preparado.

Pensa que Nelson Évora pensa que você está a tomar o lugar dele?
Sim, pois bati o recorde nacional que era dele e ele não estava preparado para aceitar isso. Ele lembrou que era campeão olímpico e eu não... são coisas que se dizem a mais. Não tem nada que ver. Quando alguém diz isso é porque está cuidando do seu estatuto. Como eu não tenho o estatuto de ser campeão olímpico, é uma vantagem dizê-lo. Faz bem em cuidar do seu estatuto, como eu também tenho de cuidar do meu. Nas pistas, cada um que faça o seu trabalho, e é aí que se prova quem é o melhor. Quando ele foi campeão olímpico eu tinha 14 anos e não competia.

Se o encontrar na rua vai cumprimentá-lo?
Eu não causei o problema. Não tenho culpa de chegar a Portugal com uma marca de 18 metros. Não fiz mal a ninguém, não é ilegal, só faço triplo salto. Quebrou-se a confiança, mas vamos ver o que se passa no futuro, dependerá do momento e das circunstâncias. Vamos encontrar-nos na seleção...

Como acha que será recebido na seleção portuguesa?
Vai ser normal, conheço alguns atletas, uns que estão no Benfica, outros no Sporting e noutros clubes. Não somos amigos de infância, mas tenho boas relações, por isso acho que vai ser normal, sem problemas e sem conflitos.

A sua chegada a Portugal pode motivar o aparecimento de mais atletas?
Sim, acho que vão querer imitar o Pichardo e o Nelson. Vai dar uma grande motivação para surgirem novos atletas, sobretudo por Portugal ter dois atletas de top mundial nesta disciplina.

(Artigo originalmente publicado a 30 de setembro de 2018)

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