observador.ptObservador - 2 ago. 00:08

Desconfinados

Desconfinados

O documento do Governo tem pouca assertividade sobre o que deve continuar a ser feito e omite tudo o que se refere a usos de máscaras e lotações em áreas de aglomeração como lojas e restaurantes.

É certo que o neologismo contém um conceito de finado que não é encorajador. Todavia, prefiro descofinamento a “libertação”. Nunca gosto quando as medidas de saúde pública são apresentadas de tal forma que sugiram prisão ou punição. A saúde pública é uma disciplina que pretende garantir o direito à protecção da saúde de cada um. E foi por isso que, na falta de melhor, se optou por restringir movimentos e se tentou impor o uso de máscaras, se reduziu a lotação de estabelecimentos, se obrigou a teletrabalho e se sugeriu que as mãos fossem mais frequentemente desinfectadas. Ao mesmo tempo, na imbecilidade dos tempos, também se lembraram de reduzir horários de atendimento em estabelecimentos comerciais, com decisões estapafúrdias como foram as de fechar mais cedo aos fins de semana, contribuindo para a aglomeração de clientes nas horas com atendimento possível. Propalou-se a parvoíce de que testar, testar, testar, seria a solução para a pandemia, sem que tivessem acautelado o cumprimento de medidas de quarentena compulsiva adequadas, o seguimento lógico de contactos e o rastreio atempado das cadeias de transmissão. Ziguezagueram no meio da ignorância e do absurdo, esgotaram-se na má comunicação, inútil e contra producente. Tomados de pânico, fizeram o que acharam que podiam e não fizeram tudo que deveriam ter feito. Sejamos justos, não foi só assim em Portugal.

E depois, com uma brevidade impressionante, foram aprovadas vacinas, todas dirigidas ao mesmo antigénio do vírus SARS-CoV-2, usando veículos e metodologias de apresentação imunológica diferentes, com eficácias idênticas, efeitos secundários variáveis e distribuição limitada. Infelizmente, como sempre acontece na saúde e no tratamento da doença, os Países mais pobres tiveram e têm menos acesso às tecnologias mais adequadas e isso vê-se nos mapas de incidência, mortalidade e cobertura vacinal da COVID-19. Não pode continuar a ser assim.

Portugal, vencidas grandes dificuldades iniciais, tem vindo a vacinar de forma consistente a sua população. As autoridades de saúde, as autarquias e o Governo merecem ser felicitadas por isso. No ponto em que estamos, seguramente em reacção a pressões da opinião pública e do Senhor Presidente que tão bem interpreta a República, embora nem sempre, o Senhor Primeiro Ministro entendeu fazer uma declaração política que sustentou em alguns argumentos técnicos.

Escolheu bem os números apresentados. De forma clara, tentou demonstrar que a vacinação, pese embora ter sido concebida para uma variante diferente da do vírus que é agora dominante, tem sido útil na diminuição da incidência, morbilidade e mortalidade da COVID de 2019. Mesmo considerados os riscos e até uma suposta mortalidade devida às vacinas, o resultado final é de que a probabilidade de morrer com COVID-19 é menor para quem está vacinado. Esta terá sido a mais importante mensagem da comunicação do PM. Vacinar é útil e é preciso continuar a seguir esse caminho de aumento e quase generalização da cobertura.

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Baseado nas taxas de cobertura vacinal, método mais simples e inteligível do que muitas das matrizes multifactoriais de risco, o Governo apresentou um plano para a retirada progressiva de medidas que visam a contenção da disseminação viral. Fez bem, no momento e na forma, mas o conteúdo do programa tem algumas coisas que só podem ser risíveis. Dito isto, não posso deixar de realçar que haver um programa, um mapa de estrada, logicamente sem um calendário fechado, será de enorme utilidade prática. É excelente ligar o plano proposto à vacinação por também ser mais um incentivo para quem se vacinou e para quem ainda aguarda por ser vacinado.

Digo que o programa tem algumas ingenuidades, risíveis, porque é só cómico falar em fim de recolher obrigatório – na verdade era ”limitação de circulação na via pública a partir das 23h” – de que ninguém tinha dado pela existência. Como é engraçado ler que os transportes públicos deixarão de ter limitação na lotação quando andaram sempre apinhados e, suspeito, apinhados continuarão. Também é divertido ler que os serviços públicos, leia-se Lojas do Cidadão e afins, passarão ao regime de fila interminável e que isso será uma conquista das pessoas enfileiradas. Eu tive de ir pedir um passaporte a 150 Km de distância de casa, depois de confrontado com marcações para daí a 3 ou 6 meses e filas de centenas de pessoas que se ajuntavam a partir das 6 da manhã, em frente de portas que se abririam às nove, para conseguirem uma senha que já não havia às 9h e 30m. Ai que saudades…

É certo que o documento do governo está baseado no wishful thinking de que não faltarão vacinas, mas isso é só um pormenor. Sejamos justos, não será por culpa do Governo ou da Armada que as vacinas nem sempre têm estado disponíveis. Vamos acreditar que tudo correrá bem.

E se correr, espero que a proibição de consumo de bebidas alcoólicas na rua se mantenha, porque a venda fora de estabelecimentos autorizados já é proibida desde antes da pandemia, como espero que o uso de máscaras nos locais e contextos apropriados não caia no esquecimento ou que as mãos não voltem a andar sujas com a expectoração de quem insiste em tapar a boca com a palma que estende a amigos e conhecidos. Há lições que não podem ser esquecidas.

E é aqui que o documento do Governo peca. Tem pouca assertividade sobre o que deve continuar a ser feito e omite tudo o que se refere a usos de máscaras e lotações em áreas de aglomeração como lojas e restaurantes, apenas focando baptizados, casamentos e eventos, esquecendo, com delicadeza, funerais. Faltam directrizes claras de como será o futuro do acesso e atendimento em locais de prestação de cuidados de saúde. Mas o documento do Governo, em pdf de fundo azul, é um manifesto político e nunca pretendeu ser mais do que isso.

Sou um defensor da vacinação. Com a mesma convicção com que entendo não ser desejável tornar a vacinação em obrigatória. Nenhum adulto pode ser obrigado a tomar um medicamento que não quer. Ora, baseados neste pressuposto moral, ético e legal, muitos Governos, incluindo o de Portugal, optaram por medidas de valor jurídico muito duvidoso para levar os cidadãos a aceitarem a vacinação. Restringir o acesso a determinados locais a pessoas que não estejam vacinadas é uma dessas formas. Claro que lhes é dada a alternativa de demonstrarem que não são portadores do vírus, através de um teste, valendo isso o que vale. Nada tem sensibilidade ou especificidade de 100%. Digamos que é uma medida para aumentar o conhecimento epidemiológico, um quase rastreio populacional dos que ainda têm dinheiro para ir jantar fora.

Não vou agora comentar a enorme trapalhada que tem sido a verificação de estado sanitário à porta dos estabelecimentos, nem a tolice recorrente de que só aos fins de semana é que interessa vigiar. Já foi assim com a estupidez de impedir que as pessoas mudassem de Conselho só aos fins-de-semana para depois constatar que até ministros foram passar uns dias fora, tendo iniciado a viagem antes da hora de fecho da “fronteira”. No entanto, sendo eu um defensor da vacinação e de todas as medidas que possam incrementar o número de imunizados, a minha crítica prende-se, mais uma vez, com a ausência reiterada de um quadro legal, não apenas discricionário e dependente da vontade de um governo, aprovado no parlamento e instrumentalmente capaz para lidar com riscos para a saúde pública, incluindo os que sejam devidos a agentes infecciosos.

Ainda restará, sem esquecer a pobreza informativa do road map apresentado, saber se haverá lugar a vacinar os adolescentes. Não sei. Mas confio na decisão da comissão que desde há muitos anos tem dotado Portugal de um dos melhores planos de vacinação gratuita de todo o mundo. Tal como confio no bom senso da larguíssima maioria dos cidadãos. Se a decisão nacional e internacional for de que há vantagem em vacinar abaixo dos 18, 16, 14, o que for, pois que se faça. E, chegada a época, aqueles que constituem grupos de risco não devem deixar de se vacinar para a gripe sazonal. O apelo que faço é que doravante, independentemente do que diga o Dr. António Costa, lavem as mãos amiúde, não se esqueçam da etiqueta respiratória -bom nome para dizer, “não sejam porcos” – usem máscaras em locais fechados, pelo menos no Inverno e, acima de tudo, se estiverem constipados não se esforcem por infetar a pessoa que está ao vosso lado. Ganharemos todos.

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