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O ″julgamento″ de Otelo

O ″julgamento″ de Otelo

Quis a TVI 24, futura CNN Portugal, fazer o "julgamento" de Otelo, no próprio dia da sua morte, com uma mesa redonda preenchida por quatro advogados, dois deles presumivelmente ainda não nascidos à data do 25 de Abril de 1974.

Dos outros, Nuno Melo, do CDS, apenas com 8 anos de idade, e Rogério Alves, nascido em 1961, que confessou durante a conversa ser adolescente à época. Isto diz bem dos critérios das televisões (e dos jornais) sobre a escolha das personalidades para comentar os eventos, em que é prioritário o facto de serem conhecidos do grande público pela passagem frequente nas televisões.

Porém, deve ressalvar-se que a presença dos mais novos se justificava, os advogados Nuno Poças e Carmo Afonso, o primeiro por ser autor de um livro recente sobre as FP-25 de Abril e a segunda por ter acompanhado João Nabais no julgamento ocorrido sobre as actividades daquele movimento surgido nos anos 1980.

Deve sugerir-se ao autor do livro que, à época, os atentados das FP-25 não tiveram a repercussão social que ele possa pensar, pois que se estava ainda no rescaldo de uma meia-dúzia de anos de grande agitação militar e civil, como se pode inferir das notícias que chegam do PREC através de memórias e relatos das pessoas que viveram esse período.

Depois do derrube de uma ditadura tão longa e das repercussões que teve em Portugal e no exterior, dando origem a grandes convulsões em África, como a derrota da África do Sul na batalha de Cuito Cuanavale, em Angola, em 1988, a interferência dos Estados Unidos da América e da União Soviética, com o objectivo de não deixar implantar em Portugal um governo radical de esquerda, a descoberta do Plano Global das FP-25, em que estaria implicado Otelo, só foi mais um episódio a acrescentar a muitos outros.

E resulta, em meu entender, de uma tentativa desesperada de alguns dos derrotados do 25 de Novembro de 75 para mudar o curso dos acontecimentos.

Os atentados da extrema-direita, por outro lado, encomendados pela CIA e descritos no livro de Miguel Carvalho, Quando Portugal Ardeu, foram sem dúvida muito mais numerosos, mortíferos e duradouros, e até continuaram depois do 25 de Novembro. Por exemplo, o atentado à embaixada de Cuba em Lisboa, na Avenida Fontes Pereira de Melo, foi em Abril de 1976 e morreram nele dois funcionários cubanos. E outros houve ainda depois dessa data. Por fim, a morte de Sá Carneiro, em Camarate, em Dezembro de 1980, envolta em mistério ainda hoje, pode dar uma ideia do que eram esses tempos agitados aos que não os viveram.

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O COPCON foi criado por ordem de Spínola em Julho de 1974, cuja chefia foi dada a Otelo Saraiva de Carvalho, um oficial da sua confiança. Segundo descreve o jornalista Pedro Jorge Castro no seu livro O Ataque aos Milionários, em Portugal existiam 7 grupos económicos e 44 famílias, que eram donas da maioria das grandes e médias empresas, industriais, de serviços e agrícolas, assim como dos meios de comunicação social. Nas entrevistas que fez a muitos elementos dessas famílias, destaca-se a afirmação de um membro dos Mellos, segundo a qual aquele dia 25 de Abril de 1974 era o início do desmoronar da CUF.

Imediatamente, essas famílias começaram a transferir para o exterior todos os bens valiosos que podiam, além de dinheiro. Ao COPCON competia policiar a saída desses bens, desde que fossem excedidos os limites autorizados pelas autoridades. Num golpe de teatro, os principais protagonistas e proprietários desses grupos, com Champalimaud e os Mellos à cabeça, foram junto do então já primeiro-ministro Vasco Gonçalves propor-lhe um plano de investimento e relance da economia portuguesa, ao mesmo tempo que andavam já enredados em planos para deitar abaixo o governo da confiança do MFA.

Dera-se a crise e demissão de Palma Carlos, em Julho de 74, que tinha embarcado no plano de Spínola de transformar o regime em presidencialista, com plenos poderes para o antigo governador da Guiné, com fortes ligações aos Mellos e Champalimaud. Estavam em causa as futuras independências, a curto prazo, dos territórios africanos, onde esses grupos também imperavam e pode imaginar-se as perdas importantes que previam.

No 28 de Setembro de 1974, Spínola forja mais uma vez uma tentativa de tomar o poder, em que se verifica a participação aberta e clandestina, em termos financeiros e operacionais, de muitos civis e militares a ele ligados. Alguns são detidos. Com a fuga de Spínola para o Brasil e o agrupamento de centenas de elementos à sua volta, que pretendiam uma revanche e o regresso a um regime sucedâneo do de Marcelo Caetano, cria-se o ELP, Exército de Libertação de Portugal, e o MDLP, Movimento Democrático de Libertação de Portugal, este já por alturas do 11 de Março de 75, quando se dá mais uma tentativa de Spínola de tomar o poder, desta vez recorrendo à acção armada.

Todas estas acções políticas e militares pressupõem recursos financeiros, logísticos e humanos muito avultados. Ora, tudo isto era financiado pelos grandes grupos financeiros, que então comandavam do exterior, depois das nacionalizações decretadas após o golpe de 11 de Março de 75, em que centenas de empresas de todos os sectores da economia reverteram a favor do Estado. Quando Nuno Melo, no citado programa da TVI 24, reclama compaixão para estes coitadinhos empresários que tinham estado alguns dias presos e até foram recebidos com palmas, no Norte, pelos seus empregados, tinha 8 ou 9 anos de idade, mas afirma que lhe contaram os sofrimentos a que foram sujeitos nas masmorras do MFA/COPCON. É isto verosímil, é isto de acreditar?

Em todas as revoluções, que impliquem grandes mudanças sociais, nomeadamente aquelas que têm como objectivo uma distribuição mais equitativa da riqueza produzida num país injusto, colonialista e opressor do seu próprio povo, como era o caso, há sempre uma reacção daqueles que perdem e que têm de ceder uma parte dos seus poderes. Será que os militares que fizeram a revolução e tiveram o apoio da grande maioria da população, como se verificou em Portugal, em 1 de maio de 1974 e depois nas eleições de 25 de Abril de 1975, com uma participação massiva, não tinham direito a defenderem-se dos que pretendiam o regresso ao passado e à situação anterior?

A primeira grande revolução, a da Comuna de Paris, em 1871, há 150 anos, durou apenas tr��s meses, não soube defender-se, no que resultou num massacre de 10 mil mortos numa semana pelas tropas de Versalhes, com o apoio dos Prussianos. A revolução russa de Outubro de 1917 viu-se atacada por tropas invasoras de mais de 20 países, incluindo o Japão, no fim da Primeira Guerra Mundial. Resistiria e sairia vencedora de modo a

implantar, em 1921, o primeiro Estado socialista, que resistiria mais tarde, em 1941, à invasão de mais de 3 milhões de tropas nazis em grande parte do seu território.

No Chile, de 1970 a 73, houve uma tentativa de implantação de um Estado socialista por via institucional e eleitoral, que foi bloqueada e sabotada pelas forças mais conservadoras, apoiadas e dirigidas pelo governo americano de Nixon/Kissinger.

Um dos seus intervenientes, o chefe do Partido Socialista chileno, Carlos Altamirano, confessa no seu livro, Chile-Dialética de uma Derrota, que os partidos que constituíam o governo não souberam entender-se para defender militarmente o regime, utilizando sempre a via institucional, enquanto os seus opositores, apoiados pelos serviços secretos americanos, cedo abdicaram da via institucional, criando as condições necessárias para desencadear o golpe sangrento de 11 de Setembro de 1973.

Por fim, uma nota sobre uma afirmação de Rogério Alves na referida mesa redonda da TVI 24. Disse ele, aí, que a maioria dos portugueses estava a favor de uma democracia de tipo ocidental. Era adolescente e por isso não tinha formação política relevante. Aquando das primeiras eleições de 1975, a maioria dos partidos, à excepção do CDS, e mais alguns à direita deste, que se extinguiriam, tinham como objectivo no seu programa a implantação do socialismo em Portugal, como aliás ficou expresso na Constituição portuguesa de 1976. Não consta que o socialismo nessa altura estivesse implantado em algum país do Ocidente. Acresce que no Programa do MFA, fazendo o diagnóstico das profundas injustiças que existiam em Portugal, já vinha expresso que iria ser adoptada "uma estratégia antimonopolista, ao serviço das camadas mais desfavorecidas do povo português".

* Investigador em Relações Internacionais

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