visao.sapo.ptapfigueiredo - 31 jul. 08:30

Visão | A questão das visualizações do YouTube

Visão | A questão das visualizações do YouTube

A visualização conta logo, mesmo antes de a “vítima” clicar naquela coisa ali em baixo que diz “saltar anúncio”

Na história da ainda tão recente indústria musical, tem existido sempre um certo choque cultural entre as gerações que se sucedem e renovam. O George Harrison, talvez por torcer o nariz ao facto de a Stéphanie do Mónaco (sim, essa: a Stéphanie dedicou-se à música por um breve período nos anos 80) ter mandado comprar todos os seus discos por forma a aparecer nas tabelas dos mais vendidos, talvez por achar que o Michael Jackson tinha ido longe demais ao vender a alma à Pepsi, fez um longo descanso de uma década, saltando a colorida e exuberante década de oitenta praticamente toda, achou por bem descansar da indústria. Quando eu comecei, era a questão do Napster e da pirataria. Muitos dos artistas amargaram com o facto de a indústria se ter, até, de certa forma, aproveitado da tão democraticamente promissora era que se adivinhava, a era da internet, do streaming, do YouTube, da circulação livre e democrática dos conteúdos artísticos. Eu nasci nesse meio, se não fossem o YouTube e os mp3, eu não teria encontrado o meu lugar. Parecia simples, divulgava-se a música de forma gratuita e o retorno haveria de chegar depois, na forma de concertos e afins. Depois, vieram as ilegalidades e os esquemas manhosos. A compra de seguidores, os Bots de fazer aumentar as visualizações de forma falsa mas até certo ponto eficaz no que toca a alardear um falso sucesso que até acaba por sê-lo graças à trapaça desse empurrão. Financeiramente compensador, ética e moralmente inaceitável. Era uma coisa básica, durante anos: era coisa que não se fazia e pronto. Só que nem por isso. O YouTube foi durante anos muito rigoroso em relação a isso, eliminando canais de produtores de conteúdos que apresentassem números e resultados inverosímeis. No entanto, quantias incalculáveis foram sendo gastas nestes esquemas, toda a gente sabia. Até que o próprio YouTube resolveu empurrar para dentro da sala da indústria da música este gigantesco elefante que por lá tem andado nestes anos recentes. É o elefante de que pouco se fala. É o elefante das vendas de visualizações legais e autorizadas pelo próprio YouTube, que decidiu que, se era assim, então que fosse o próprio YouTube a encaixar essas toneladas de dinheiro. E foi assim que, sorrateiramente, a monstruosa plataforma começou a vender views. São views falsas, correspondem a números de visualizações em que nenhum ser humano assistiu a qualquer videoclip e que, ironicamente, se podem comprar investindo na legal e autorizada plataforma “TrueView”. Consiste em transformar o videoclip num anúncio, daqueles que aparecem antes de quase todos os vídeos que hoje em dia estão alojados na plataforma, e definir o perfil do utilizador a quem esse videoclip-tranformado-em-anúncio há de aparecer. Um dos parâmetros que se pode definir é o país onde o utilizador se encontra. E há países onde esses pop-ups indesejáveis são mais baratos. Então o processo é simples: diz-se ao YouTube que o anúncio que queremos que apareça é o videoclip, pomos a aparecer a pessoas que estão no Congo, e (agora, sim, o engenho e a manha) a visualização conta logo, mesmo antes de a “vítima” clicar naquela coisa ali em baixo que diz “saltar anúncio”. E essas views somam ao contador final. Perfeitamente legal e autorizado. E aí já sou eu o velho resmungão que acha que isso é ir longe demais. Muitos amigos meus desta área têm editoras e managers a fermentar as suas visualizações e eles nem sequer sonham que o método é este, o das “TrueView”. Se soubessem, nunca autorizariam. Por uma questão estética, até. Haveriam de preferir que o grosso do orçamento de uma canção fosse investido na arte e não nas visualizações falsas.

(Crónica publicada na VISÃO 1482 de 29 de julho)

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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