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Visão | Exclusivo: Como a extrema-direita regressou à Ibéria, num livro de Daniela Santiago, correspondente da RTP em Espanha

Visão | Exclusivo: Como a extrema-direita regressou à Ibéria, num livro de Daniela Santiago, correspondente da RTP em Espanha

Entre o Vox (Espanha) e o Chega (Portugal), existe um traço comum na agressividade para com a condição feminina. Em exclusivo, a VISÃO pré-publica um largo excerto do capítulo final de "A Tempestade Perfeita", que será lançado na próxima semana com a chancela da Oficina do Livro

Com a chancela da Oficina do livro, a jornalista e correspondente da RTP em Espanha, Daniela Santiago, lança o livro A Tempestade Perfeita – como a extrema-direita regressou à Península Ibérica. A obra sairá na próxima terça, 18 de maio, e nela a autora analisa, em paralelo, a ascensão do Chega e do Vox em Portugal e Espanha. Daniela Santiago apresenta estatísticas, reproduz intervenções em espaço de redes sociais e acolhe reportagens e entrevistas para chegar a um resultado surpreendente – e inquietante.

Em exclusivo, e com subtítulos da nossa responsabilidade, fazemos aqui a pré-publicação de um largo excerto do V Capítulo, o último, intitulado Violência Machista. Nele se identifica um traço comum, entre Vox e Chega, na agressividade para com a condição feminina, mas também se conclui que, em termos de políticas de paridade – ou, ao menos, nos seus resultados –, a Espanha está muito mais avançada. O que talvez explique o tom reativo, ainda mais ultramontano, do Vox, comparado com o do Chega, relativamente à afirmação da mulher, na sociedade e na política…

Pré-publicação: Violência Machista (capítulo V)

Em Espanha, foram assassinadas 1078 mulheres, desde 2003. Em Portugal, desde 2004, morreram 566 em contexto de violência de género. Só em 2020, em plena pandemia, perderam a vida 32, menos três do que em 2019. Mais de metade mantinha relações de intimidade com o agressor. Num relatório elaborada pela Polícia Judiciária portuguesa pode ler‑se que nos últimos 6 anos foram assassinadas, em Portugal, 316 mulheres, das quais 111 no contexto de relações de intimidade, 16% do total de homicídios registados no país. Em média, uma mulher foi assassinada pelo companheiro ou ex‑companheiro, a cada 20 dias em Portugal.

Santiago Abascal, líder do Vox (Foto: Ricardo Rubio)

As estatísticas em Espanha são claras, tão claras como cruas e arrepiantes. Estão à distância de um clique, num computador, num telemóvel, no portal do Ministério da Igualdade. Assim que entramos, surge uma janela da Delegação do Governo de Espanha contra a Violência de Género onde, facilmente, acedemos a todas as estatísticas, estudos, informações, com detalhes que visam a proteção da vítima, como a opção de saída rápida, sempre disponível no ecrã, que apaga, de imediato, todo o historial de busca. Há também indicações que explicam como fazê‑lo de forma manual para não deixar rasto no historial de navegação, nem revelar que está à procura de ajuda/informação ao possível agressor. O 016, o número de atenção a vítimas de violência de género também faz parte da informação com acesso direto e permanente.

Em Portugal, a tarefa parece‑nos mais complicada. Recorremos a várias entidades que, por sua vez, consultam várias fontes, somam dados, cruzam números, para obter dados fidedignos sobre este flagelo. De acordo com a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, metade das mulheres assassinadas em Portugal, em 2019, foram­‑no no contexto de relações de intimidade. Esta associação analisou os Relatórios Anuais de Segurança Interna (RASI), os dados fornecidos pelo governo, as estatísticas da Justiça, as estatísticas do INE, referentes aos anos 2015 a 2019, e conclui:

– 98% dos violadores eram homens, sendo que 91% das vítimas eram mulheres.

– 80% das crianças abusadas sexualmente eram do sexo feminino e 96% dos abusadores eram do sexo masculino.

Em 2019, duas em cada três crianças abusadas sexualmente foram‑no por pessoas das suas famílias ou conhecidas (68%).

– Entre 2012 e 2018, 4 em cada 5 inquéritos judiciais (78%) por violência doméstica foram arquivados sem acusação por falta de provas. De regresso a 2020, para além de 27 mulheres, morreram quatro homens e uma criança10, em contexto de intimidade. As forças de segurança registaram cerca de 24 000 participações por violência doméstica. No primeiro semestre de 2020 tinham sido acolhidas 907 mulheres e 727 menores em casas de abrigo.

O que diz o Vox

 “E então? Vamos por números?” A resposta de Francisco Serrano, líder do Vox na Andaluzia, quase nos desarma. Acabámos de o confrontar com as propostas do partido para acabar com a legislação que protege as mulheres da violência de género, em Espanha. Não tenta sequer esconder a arrogância na resposta e no olhar que me endereça. Não gosta de ser confrontado. Acredito que se incomode ainda mais por ser uma mulher a fazê‑lo. Curioso. Serrano tem duas filhas. É pai de duas mulheres e, no entanto, tem tantos problemas com o sexo oposto, no que diz respeito a assumir que ainda é o sexo fraco, quando se fala de agressão, violação, assassinatos. “Na Europa, especialmente em Espanha, depois de 1978, depois da Constituição, por lei não pode haver discriminação por sexo. Há que corrigir situações particulares, mas hoje, no século XXI, não se pode dizer que a mulher espanhola, tal como a portuguesa, por ser mulher é inferior ao homem na relação de casal. Não só discrimina o homem, como prejudica as famílias, as crianças. Ataca a própria dignidade da mulher. Deve ocupar a posição que merecer por mérito e capacidade, o resto é oportunismo. Não estamos a falar de oportunidades, mas sim de fazer trapaças na carreira para chegar ao poder.” Francisco Serrano discorda, por completo, das quotas de género, que têm por objetivo equilibrar a presença de mulheres e homens em lugares de destaque de empresas, instituições públicas.

Francisco Serrano [líder do Vox na Andaluzia] discorda, por completo, das quotas de género, que têm por objetivo equilibrar a presença de mulheres e homens em lugares de destaque de empresas, instituições públicas

Curiosamente, o Vox insiste nestas propostas quando o reino conhece o primeiro governo com mais mulheres que homens (o primeiro governo minoritário de Pedro Sánchez), seguido meses depois pelo mais paritário de sempre (de coligação PSOE/ Unidas Podemos), com o mesmo número de homens e mulheres como ministros e três mulheres entre quatro vice‑presidentes. A temática ressurge em finais de 2018 quando a então vice‑Presidente do Governo, a número dois do executivo de Espanha, Carmen Calvo, avança com a obrigatoriedade de todos os Conselhos de Administração das grandes empresas serem paritários com, pelo menos, 40% de cada género. A discussão instala‑se, entre quem defende as quotas como um instrumento a favor da mulher e quem entende que, pelo contrário, a discrimina, desvalorizando o seu próprio valor. No entanto, a experiência em países nórdicos, como a Noruega, que aprovou a Lei da Paridade em 2003, revela que a imposição funciona. Funciona mais que a prometida boa vontade das empresas, o alegado reconhecimento das discrepâncias existentes, por parte dos homens, e a reconhecida mais‑valia, profissionalismo das mulheres. A proporção de mulheres nos CA, em Espanha, passou de 3%, em 2003, para 42% em 2012. Outros países, como França, Bélgica, Alemanha, Espanha, Portugal… já seguiam ou avançaram no mesmo caminho. Um estudo do Women to Watch, um programa da PwC12 para impulsionar a diversidade, ajudar as mulheres em cargos diretivos, revela que em Espanha, em 2007, havia 12 PricewaterhouseCoopers, uma das maiores empresas de serviços de auditoria, consultoria e assessoria do Mundo.

… E o Chega?

Em sintonia, quase passadas a papel químico, algumas das 70 medidas para Reerguer Portugal, o Manifesto Político do Chega para as Legislativas de 2019, afinam pelo mesmo diapasão. Esta é a terceira, de sete dezenas de reivindicações, e termina com uma exclamação: “Supressão da Lei da Paridade e de qualquer tipo de políticas de quotas. Defendemos uma sociedade justa e não com base na discriminação, defendemos uma sociedade com base no mérito, onde os melhores não serão prejudicados pelos medíocres!”

A Lei da Paridade, em Portugal, é anterior à de Espanha. Em agosto de 2006, a nova legislação estabelece que as listas para a Assembleia da República, para o Parlamento Europeu e para as autarquias locais são compostas de modo a assegurar 33,3% de cada um dos sexos. Em 2017, 11 anos depois e, mais uma vez, um ano antes de Espanha, as quotas chegam ao mundo empresarial, com a Lei n.º 62/2017, de forma a existir uma representação equilibrada dos dois géneros nos conselhos de administração, na fiscalização das entidades públicas empresariais, das empresas cotadas em bolsa. A 21 de março de 2019, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa promulga as Leis da Paridade e da Representação Equilibrada, que alteram a legislação de 2006. As listas para cargos políticos têm de ter, atualmente, representação mínima de 40% de mulheres, assim como de homens.

Para além de lugares de chefia, de destaque na hierarquia das instituições e de grandes empresas, na primeira metade de 2020, Portugal foi o país da Europa onde os salários das mulheres mais recuaram

É esta lei que o Chega promete suprimir se chegar ao governo de um país onde o significado da palavra paridade, em direitos, em salários… está longe de se aproximar da realidade. O The Global Gender Gap Index 202014 revela que Portugal subiu dois lugares no ranking da paridade, está no 35.º lugar. Em diversos indicadores como participação política e económica, educação, saúde… Há ainda muito a corrigir. Espanha ocupa a oitava posição, subiu 21 posições, em relação a 2018. Atualmente, o governo espanhol é composto, exatamente, por 50% de homens e mulheres. A presença da mulher em cargos de destaque, no Governo, nas Cortes, nos governos regionais, nos partidos políticos, nos conselhos de administração de grandes empresas espanholas é incomparável à realidade portuguesa. Para além de lugares de chefia, de destaque na hierarquia das instituições e de grandes empresas, na primeira metade de 2020, Portugal foi o país da Europa onde os salários das mulheres mais recuaram. O Relatório Global sobre os Salários 2020/202115, da Organização Internacional do Trabalho, revela que os vencimentos das mulheres tiveram uma queda de 16%, uma perda na massa salarial acima da redução de 11,4% nos ordenados dos homens, tratando‑se da mais elevada num conjunto de 28 países. A desproporcionalidade do impacto da crise económica, gerada pela pandemia da Covid-19, é comum a todos os países analisados, no entanto, a média de perda salarial das mulheres é de 8,1% e dos homens de 5,4%, bastante aquém dos valores registados em território português.

O “hembrismo” é uma expressão de difícil tradução para português. É redutor traduzi‑la para feminismo. Hembra=fêmea. Nas redes sociais, nomeadamente no Twitter, é muito utilizado em Espanha. Somam‑se tuítes machistas, para além de racistas e homofóbicos, publicados por Francisco Serrano, anos a fio

Vox: as mulheres também matam

A entoação, o olhar, alteram‑se quando confrontamos o deputado e magistrado Francisco Serrano com o número de vítimas de violência “machista” dos últimos anos. Responde‑nos assim: “Ontem uma mulher também assassinou o marido em Ceuta”. E quantos casos há como esse? Nos últimos dez anos, foram assassinadas pelos cônjuges, namorados, companheiros, mais de 700 mulheres. E homens?, insistimos. “Nós o que dizemos é que há que proteger as vítimas no ambiente familiar, as mulheres também, queimamos a boca de tanto repetir isso, mas protegemos, igualmente, os idosos, crianças, homossexuais, lésbicas, as pessoas que estão numa situação de inferioridade na relação.” Na imprensa espanhola pode ler‑se que “se existe tema que nunca sai da cabeça deste ex‑juiz é a sua constante obsessão contra o “hembrismo”, o feminismo radical e o jihadismo de género. (…) O “hembrismo” é uma expressão de difícil tradução para português. É redutor traduzi‑la para feminismo. Hembra=fêmea. Nas redes sociais, nomeadamente no Twitter, é muito utilizado em Espanha. Somam‑se tuítes machistas, para além de racistas e homofóbicos, publicados por Francisco Serrano, anos a fio. (…) “Por certo, em Espanha, e já assisti a isso, há locais onde cobram a entrada a homens e não a mulheres. Deve ser porque são todos violadores. Questiono­‑me: por que razão as líderes feministas radicais transgénicas não vão para países muçulmanos a defender os direitos das mulheres?” Insiste em que as mulheres são tão agressoras como os homens, contudo assegura que não são punidas como tal. Chega ao ponto de publicar uma notícia relativa à detenção de uma mulher, para afirmar, no título: “Outro caso isolado de violência tolerada e tolerável”. A fotografia, o texto, pro‑ vam, exatamente, o contrário. (…)

André Ventura vs Carolina Deslandes

André Ventura não se coíbe de entrar em polémica com artistas, apresentadores, como Cláudio Ramos, Agir ou Carolina Deslandes. (…) Ora entrar em polémica com uma cantora, compositora, influencer que é seguida por mais de 770 mil pessoas no Instagram, só pode ser uma mais valia para o CHEGA. A troca de mimos foi noticiada em vários media e deu origem a inúmeros comentários. (…) O Presidente do Chega acusa Deslandes de querer contaminar uma geração inteira e os seus milhares de seguidores (…) Um ano depois, em junho de 2020, no Twitter, Ventura voltou a envolver‑se com Deslandes e o músico Agir, numa troca de comentários e farpas a uma publicação do líder do Chega. André Ventura criticou Agir pela voz frouxa e esse corpo tatuado à gansgter efeminado e Deslandes de ter ar de quem fumou erva. Assim anda a política na Península Ibérica.

O livro A Tempestade Perfeita (Oficina do Livro), de Daniela Santiago, chega às livrarias na próxima terça-feira, 18
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