visao.sapo.ptClara Cardoso - 15 abr. 08:42

Visão | O mercadejador de São Bento

Visão | O mercadejador de São Bento

É o Estado de direito a funcionar, estúpidos!, dirão alguns. Ao que os estúpidos, legitimamente também, responderão que então algo vai mal com o Estado de direito em Portugal

O dia 9 de abril de 2021, data da leitura da decisão instrutória da Operação Marquês, ficará para a História como o dia em que os portugueses se sentiram traídos pela Justiça. Os factos são conhecidos, e sobre eles escrevi logo nessa tarde no site da VISÃO: sete longos anos de investigação embrulhados num megaprocesso que abarcava quase todas as altas figuras do “regime” culminaram com 231 minutos de sova pública na credibilidade e na segurança do sistema e das instituições judiciais. No entender de Ivo Rosa, do Tribunal Central de Instrução Criminal, devido a falta de indícios ou prescrição, dos 189 crimes enunciados pelo Ministério Público, ficaram de pé, até nova decisão da Relação, apenas 17 crimes – mais de 90% dos crimes imputados pela investigação foram enfiados na gaveta.

E agora, legitimamente, os portugueses não sabem no que acreditar: se os prazos já prescreveram há muito, como é que se atrasou tanto a investigação? Se o caso tivesse sido agora avaliado por outro juiz, seria tudo diferente? Se José Sócrates foi corrompido, porque não é julgado? Ou o sistema falhou muito e perseguiu injustamente e de forma inadmissível cidadãos inocentes, ou o sistema falhou muito e está a deixar sair impunes os poderosos e os “donos disto tudo”. .

A decisão de Ivo Rosa será agora reavaliada em sede própria, que é o Tribunal da Relação. Pode o tribunal entender, como uma maioria de juristas e constitucionalistas, que esta contagem dos prazos de prescrição não faz sentido, tal como não faz sentido considerar que a interpretação dada à fraude fiscal – que a ilicitude da origem não obriga à declaração desses rendimentos – é disparatada (porque é a expressão última do ditado popular que diz que o crime compensa). Ou pode a Relação concordar, e José Sócrates será apenas julgado por três crimes de branqueamento e três crimes de falsificação de documentos.

O arguido José Sócrates faz o que seria de esperar perante uma decisão desta magnitude: congratula-se com a decisão de Ivo Rosa, canta vitória e acusa a Justiça de um “esplendor de perversidade”.

Mas de uma coisa o ex-primeiro-ministro não se livrará: do juízo, plasmado pelo único agente da Justiça ultragarantístico que agora louva, de ser um mercadejador em São Bento. Tem a presunção de inocência do seu lado até trânsito em julgado de uma sentença, mas pela primeira vez na história da democracia portuguesa, um juiz veio dizer que há provas de que um primeiro-ministro foi corrompido enquanto estava em funções, e que recebeu ilicitamente 1 727 398,56 euros de Carlos Santos Silva. “Os factos indiciados quanto às entregas em numerário indiciam, deste modo, a existência de um mercadejar com o cargo por parte do primeiro-ministro face ao arguido Carlos Santos Silva e, por conseguinte, uma invasão do campo da ‘autonomia intencional’ do Estado”, pode ler-se na página 2 609 da decisão instrutória. Prática que consubstancia um crime de “corrupção passiva sem demonstração de ato concreto”, mas que na sua opinião já terá também prescrito e não poderá ser levada a julgamento.

Isto é grave, é triste e devia envergonhar todos os democratas. Todos menos, claro, José Sócrates, que não tem nenhum pejo em dizer que tinha dificuldades financeiras permanentes mas vivia luxuosamente com dinheiro emprestado, às custas de um amigo generoso, nem mostra qualquer tipo de exercício de autoconsciência ou arrependimento. Sócrates não foi só o primeiro-ministro que deixou um défice recorde de 11,2% e que levou o País à bancarrota – foi também aquele que, independentemente de qualquer decisão judicial que venha a ser proferida, ostentou a conduta pessoal mais condenável.

Perante isto, o silêncio do Partido Socialista é ensurdecedor. Está por fazer uma autocrítica e um ato de contrição, com a devida avaliação de como se chegou aqui com um líder mercadejador sem que soassem os alarmes internos. Impõe-se uma demarcação pública de todo este capítulo negro na História do País. E isso, desculpem, não é da ordem da Justiça, mas sim da ética republicana, sem a qual a política não tem sentido.

(Editorial publicado na VISÃO 1467 de 15 de abril)

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