rr.sapo.ptOpinião de José Miguel Sardica - 14 abr. 07:20

​José Sócrates e a democracia portuguesa

​José Sócrates e a democracia portuguesa

Sim, ele averbou uma meia vitória; mas a outra metade da história, que a sua natureza mitómana omitiu, foi uma estrondosa derrota. E é o silêncio geral do sistema sobre esta derrota que mais me preocupa, pelo que revela de podridão moral generalizada.

As decisões de Ivo Rosa no despacho sobre a Operação Marquês darão matéria para inúmeros seminários e aulas práticas de Direito. A um não jurista, algumas coisas causam-me perplexidade: a maneira como ele desqualificou, com adjetivação forte, sete anos de investigação e provas do Ministério Público; o facto de uma mesma matéria poder ser tão diversamente apreciada por um juiz (Ivo Rosa), ou por outro (o seu antecessor, Carlos Alexandre); a forma como provas indiretas (muitas vezes não há outras) e testemunhos ajuramentados foram desprezados; finalmente, aspetos técnico-legais particulares, como os prazos de prescrição do crime de corrupção ou a inexistência de fraude fiscal (no caso de Sócrates), por Ivo Rosa achar que não é possível as finanças tributarem proveitos de atividades ilícitas.

Mas é fora da bolha jurídica que a Operação Marquês deve ser apreciada e sublinhados os seus estilhaços. Aquilo é um megaprocesso, colocando o regime e a elite portuguesa no banco dos réus. Como o país é pequeno e toda a gente que é gente se interrelaciona, a sensação difusa com que se fica é que o regime tratou de se auto desculpabilizar, emagrecendo bastante a lista dos crimes que vão a julgamento e quase fazendo desaparecer a putativa culpa de figuras que lesaram, substantivamente, o país e os portugueses: Salgado, Bataglia, Bava, Granadeiro, Vara, etc. Parece que o crime compensa, e tanto mais quanto maior for a escala e o montante.

No centro de tudo, está o nome mais sonante - José Sócrates, primeiro-ministro de Portugal durante seis anos. Dos 31 crimes de que ia acusado, seguem para julgamento seis. À saída do tribunal, o antigo “menino de ouro” do PS cantou vitória com voz embargada, como se fosse um preso político libertado de Caxias em ombros.

Ivo Rosa estabeleceu, com todas as letras, que Sócrates se deixou corromper, que “mercadejou” com o cargo de primeiro-ministro e que aceitou ser objeto de uma “compra de personalidade”, diretamente pelo dinheiro provindo de Santos Silva, sabe-se lá de onde mais! António Costa, que foi o n.º 2 do “mercadejador”, estabeleceu, logo em 2014, que à justiça pertence o que é da justiça e à política o que é da política. Havia que isolar o ex-chefe, deixá-lo cair e salvar o PS… As coisas não deveriam ser tão fáceis. Ninguém mercadeja sozinho e sem que os mais próximos não se apercebam disso. Pela primeira vez na democracia portuguesa, um líder de governo foi comprovadamente corrupto, embora não possa ser julgado por isso; só os frutos da corrupção, o capital recebido e branqueado, transita para o banco dos réus. Isto é de uma gravidade extrema e deveria não só liquidar a prosápia vitimizante de Sócrates como fazer o PS pensar – mas pensar a sério, e em ato de contrição – o que andou (e anda) a fazer. O sistema, porém, não quer ver-se ao espelho e o espelho de Sócrates devolve-lhe a imagem egocêntrica e vaidosa de quem sempre se julgou acima da lei e de quem prostituiu (é o termo) um dos cargos mais importantes da democracia portuguesa. Se isto não chegar para remeter o “animal feroz” à insignificância; se o dito cujo forçar o regresso e alguém lhe abrir as portas; se, com livros de autoria suspeita e prefácios laudatórios de Dilma Rousseff, o “mercadejador” se achar o Lula português com hipóteses para Belém (em 2026), é a democracia portuguesa que deixará de se poder olhar ao espelho – se é que ela ainda tem vergonha na cara.

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