visao.sapo.ptsvicente - 14 abr. 08:24

Visão | Sapato de fivela em Porches

Visão | Sapato de fivela em Porches

Esta história foi-me contada na primeira pessoa pelo sapato, por esse sapato. Tinha sido transportado até ali na boca dum cão abandonado. Um cão de muitas raças e portanto de nenhuma

É uma escarpa de terra barrenta que desce até uma praia recôndita, um adulto ágil consegue chegar à areia, a custo, fazendo uso dos quatro membros, aqui e ali é preciso agarrar pedras, raízes e limos. O trilho foi talhado por audazes utentes deste oficioso caminho que, de tantas mãos e pés que o hão de ter subido e descido, se foi firmando e solidificando pelo uso, pelo tempo, pelos anos. Já o desci e subi algumas vezes ao longo dos tempos. De tão óbvio que não é para uso vulgar dos cidadãos, nem sequer tem qualquer daqueles sinais proibindo ou desaconselhando a descida. É óbvio que não é para andar por ali, é óbvio que se trata duma daquelas praias do concelho de Portimão que só são acessíveis por via marítima. E, algures no meio do sinuoso e arriscado caminho, um sapato. Um improvável, desadequado e insólito sapato de homem. Se ainda fosse um chinelo, se ainda fosse um boné, mas não: um sapato de pele preta e de fivela, um sapato de festa, de gala, de baile, de cerimónia, não ali, nunca ali naquela escarpa barrenta de acesso secreto a uma praia secreta do concelho de Portimão. E esta história foi-me contada na primeira pessoa pelo sapato, por esse sapato. Tinha sido transportado até ali na boca dum cão abandonado. Um cão de muitas raças e portanto de nenhuma, um rafeiro apanhado na rua e na rua despejado por uma professora primária de Ferragudo, cão esse para quem um par de sapatos a uma pedrada de distância do muro de uma vivenda em Porches representou bem-vinda novidade num dia a dia sempre igual, abocanhou um, apenas um, do par escolheu, obedecendo às insondáveis leis do acaso, o esquerdo. Roeu quanto lhe aprouve roer, num golpe de mandíbula o jogou ravina abaixo e já está, e o que fazia um par de sapatos ali jogado sem critério, a uma pedrada de distância do muro de uma vivenda de Ferragudo, pois foi Anders, o sueco sem qualquer pelo na cabeça e que era o dono da dita vivenda, que os atirou com seca raiva dali para fora quando os viu no tapete da porta de entrada (os suecos não andam calçados em casa) e os achou, os soube, os sentiu ali a mais, nitidamente a mais, ao lado dos de Ebba, a mulher com quem se tinha casado havia 17 anos, assim que esta completara 18 (ele com 46 na altura), então atirou-os dali para fora como se assim não se tivesse passado, não se passasse, não se fosse passar nada, sapatos longe da vista e meia volta recolher para o Saab novo que seria o presente surpresa desta ingrata, desta ignara criatura que não merece sequer saber que eu sei, pensou ele quando já ia na A2 a caminho do aeroporto de Lisboa e olha, seja quem for ao menos vai descalço para casa. Esse seja quem for era o Samuel Manteigas que marcava consultas de ortodontia num centro de atendimento em Portimão e que na véspera do dia de anos de Ebber comprou uns sapatos nos saldos do Aquashopping e se aventurou sozinho pelo Casino do Hotel da Praia da Rocha adentro como quem enfrenta um pelotão de fuzilamento de cabeça erguida a pensar azar ao jogo sorte ao amor, azar ao amor sorte ao jogo e não é que ganhou 350 euros nos cavalos e a atenção da alemã, inglesa, ou seria sueca, que tinha acabado de dar uma palmada de mão aberta na cara de uma slot machine e sorriu na direção do indivíduo de aspeto macilento e perdido sem saber o que fazer com as mãos, metade dedos finos à mostra, outra metade tapada pelo pano a mais do casaco feio-escuro, e tudo isto contou-me o sapato da escarpa para a praia deserta ali em (não vou dizer exatamente onde), será que ainda lá está o sapato, em princípio não estará, calçado que conta histórias destas dura pouco em cada sítio.

(Crónica publicada na VISÃO 1466 de 8 de abril)

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