observador.ptObservador - 14 abr. 00:03

Operação Marquês for dummies

Operação Marquês for dummies

Não está em causa sacrificar José Sócrates sem julgamento para agradar às massas. Pelo contrário, a Justiça exige um processo adequado e não pode ser ...

Declaração de motivos: a Operação Marquês ocupou uma ampla parte do século XXI português. Chego ao ponto de dizer que estamos todos emocionalmente envolvidos, porque o julgamento invoca tempos de má memória e o pior do pior da nossa classe política, encarnado num ex-Primeiro-Ministro com a desfaçatez de… enfim, estamos todos envolvidos. Contudo, não seria correto falar do assunto sem fazer assinalar que este envolvimento emocional não está correto: o nosso sistema baseia-se na independência e na imparcialidade dos juízes, nas garantias dos arguidos (nomeadamente, presunção da inocência) e, acima de tudo, na racionalidade ou, pelo menos, ponderação que distingue o magistrado no seu tribunal do estereótipo do camponês revoltado e irascível, de tocha e forquilha. Isto tudo para dizer que o processo é complicado demais para juízos fortuitos, como se veem nas redes sociais – mas isso adiante. Entre pânicos, insultos e gritos de alma, para tentar separar o trigo dos factos do joio dos “tudólogos” das redes sociais, decidi escrever algumas linhas para dar a entender o que é a Operação Marquês, o que se passa no processo, quem está bem e quem está mal e se acho que se vai fazer justiça – da maneira mais racional que conseguir. Vou falar sobre os factos da Operação Marquês, sobre o Direito, sobre algumas notas que há a reter e sobre o que podemos esperar no futuro.

Factos: A Operação Marquês é um megaprocesso, com uma dimensão nada menos do que monstruosa. Em poucas palavras:

  • Crimes em causa – Suspeitas de crimes de corrupção ativa e passiva, branqueamento de capitais, falsificação de documentos, fraude fiscal, peculato, etc.
  • Quem está em causa – 19 pessoas (e 9 empresas), entre as quais José Sócrates, Ricardo Salgado, antigo presidente do BES, Armando Vara (ex-administrador da CGD), Carlos Santos Silva (amigo e dito “testa-de-ferro” de José Sócrates, alegadamente recebia dinheiro por ele) e todo um concílio macabro de administradores de empresas e amigos abastados.
  • Qual é a acusação – A acusação (sublinha-se: por agora, acusação) do Ministério Público (MP) é complexa demais para esgotar todos os pontos, mas a ideia será esta: José Sócrates terá recebido muito dinheiro, de forma indireta, que motivou decisões suas. No total, pelo menos, 34 milhões de euros – e voltaremos a esta questão do dinheiro na parte do Direito. Mas, no plano geral, largos milhões foram para, por exemplo, favorecer o Grupo Espírito Santo de Ricardo Salgado (o BES terá ganho 8 mil milhões), além de outros negócios, como o empreendimento de Vale do Lobo, os negócios do Grupo Lena, etc. Este dinheiro terá sido movimentado por contas bancárias de figuras como Carlos Santos Silva – ou, como diz a defesa, o dinheiro não serviu para nada disso.
  • O que se passou no processo – Em fases diferentes, intervieram juízes diferentes: o juiz Carlos Alexandre e o juiz Ivo Rosa: ao que parece, são o 8 e o 80. Ou seja, será esta a ideia: se Carlos Alexandre tem o perfil de seguir a posição do Ministério Público, Ivo Rosa, pelo contrário, apenas segue a posição do Ministério Público quando é irrefutável, numa perspetiva de defesa das garantias do arguido. O juiz Ivo Rosa, por sorteio, ficou incumbido de se pronunciar sobre a acusação do Ministério Público – e a maioria da acusação caiu por terra. Resta pensar no Direito (em baixo) e saber porquê.

Direito – Relativamente ao tema do Direito, será a secção mais espinhosa da Operação Marquês. Perante aquela emoção de que já falei, para a maioria foi uma desilusão a decisão (recorrível) de Ivo Rosa – mas, na verdade, era mais ou menos expectável. Há algumas palavras-chave importantes para perceber o porquê da decisão do juiz: nulidades insanáveis, prova indireta e prescrição. Vejamos:

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  • Nulidades insanáveis – No Direito, quando algum ato viola a lei, corre o risco de ser inválido e, como é o caso, nulo – ou seja, é fulminado, como se não existisse. Será insanável quando não consegue a nulidade ser sanada, ou seja, “corrigida”. Foi o que aconteceu, desde logo, com algumas escutas que migraram do processo Face Oculta para a Operação Marquês: a prova não pode ser utilizada no processo, o juiz não a pode tomar em conta. Também foi o caso de alguns dados obtidos durante o inquérito ao Banco de Portugal: se a lei não se segue, é ilegal; e uma prova ilegal não pode servir de prova. Cai parte da argumentação.
  • Prova indireta – Quando falamos em prova indireta ou indiciária, temos de falar primeiro de criminalidade financeira, especialmente em corrupção: são casos de extrema dificuldade de prova. Evidentemente, Sócrates, ao vender favores, não passava fatura: há acordos, os visados escondiam o rasto, há muitos intermediários. Entre juristas, isto é fonte de grandes debates e causa de poucas certezas: se pedirmos prova direta (certa, clara, notória), como Ivo Rosa, os crimes de corrupção passam maioritariamente impunes; se pedirmos prova indireta ou indiciária (da qual podemos extrair ilações, menos clara, requer extrapolações da experiência comum), é mais fácil provar – mas podemos chocar contra a presunção de inocência. O juiz Ivo Rosa, independente e livre de o fazer, tem uma posição que protege mais o arguido, que tem (e deve ter) direitos e garantias; mas, por outro lado, a falta de prova direta reduziu a acusação de 189 crimes a um julgamento de 17 e, sublinhe-se, ilibou José Sócrates de todos os crimes de corrupção, menos de um crime de corrupção que prescreveu. O que nos leva ao ponto seguinte.
  • Prescrição – Os crimes, como as multas de trânsito por cobrar, prescrevem – que é justo e necessário (ou costuma ser). Contudo, é preciso interpretar: a partir de quando é que começa a contar o prazo para a prescrição? Sem entrar em aspetos técnicos, relacionados com alterações legislativas, basta dizer: o MP tinha um entendimento diferente do juiz. O juiz tem o entendimento da maioria, acompanhado pelo Tribunal Constitucional: o prazo começa a contar a partir do momento em que se promete oferecer uma vantagem. O MP não concorda e tem do seu lado menos jurisprudência, mas a sua interpretação também faz sentido: o prazo começa a contar com o pagamento. A consequência disto: o único crime de corrupção que Ivo Rosa admitiu, entre Sócrates e Santos Silva, já tinha prescrito – ou seja, não pode ir a julgamento.

A reter – Visto o que é e como funcionou a Operação Marquês, cumpre fazer algumas notas.

Em primeiro lugar, isto não é uma catástrofe: a decisão do juiz vai a recurso, para o tribunal da Relação de Lisboa. Isto não é o julgamento, sequer: a instrução decide apenas se vai a julgamento.

Em segundo lugar, cuidado com o que se lê: uma petição que, neste momento, tem mais de 159 mil assinaturas (11 de abril, 21h), pede o afastamento do juiz Ivo Rosa da magistratura – mas é um juiz independente e, se um juiz não é independente, não somos um Estado de Direito. Quando os juízes forem afastados pela opinião pública por seguirem a sua interpretação academicamente titulada, vamos viver numa ditadura. Por outro lado, já vi muita gente a apontar o dedo a Carlos Alexandre e ao MP. Caindo no risco de ser excessivamente coloquial, isso é conversa de charlatães. O processo tem mais de 6.000 páginas: se alguém está suficientemente confortável para fazer o trabalho do juiz ou do Ministério Público, ou é um pantomimo ou também é um magistrado.

Em terceiro lugar, isto não pode fica assim: no meu texto, invoquei prudência e racionalidade – e, evidentemente, estou a escolher deixar algumas considerações mais azedas nas entrelinhas –, mas não deixo de dizer o seguinte: é preciso fazer Justiça. Não está em causa sacrificar José Sócrates sem julgamento para agradar às massas – e, contra a vontade de muita gente, não é disso que se pode tratar. Pelo contrário, a Justiça exige um processo adequado e não pode ser feita de forma leviana, mas isso será apenas sinal de que tal como o martelo do juiz deve ser pesado ao levantar, deve ser pesado ao bater. Isto para dizer que devemos confiar no processo e confiar que, no futuro, virá a sensação de que justiça foi feita.

Em quarto lugar e não menos importante, corremos o risco de alhear a comunidade da Justiça e da política: independentemente de considerações sobre o sentido do julgamento, há um sentimento de impunidade e de injustiça que faz com que muitos cidadãos não acreditem no sistema. Quanto a isso, não há muito a fazer: teremos de esperar e teremos de ser mais exigentes com a nossa classe política.

No futuro – A decisão, independente e imparcial, do juiz Ivo Rosa foi recorrida pelo MP: no futuro, o tribunal da Relação de Lisboa pronunciar-se-á. José Sócrates (além de outros arguidos em situações análogas), apesar de tudo, vai a julgamento relativamente a acusações de branqueamento de capitais e de falsificação de documentos. Contudo, para a resolução da Operação Marquês, teremos de esperar vários anos. Como abutres e sanguessugas, algumas figuras vão aproveitar-se da decisão: alguns vão clamar pela inocência de José Sócrates; outros vão lançar críticas ao sistema, como se estivesse podre (com um grito que diz “Chega!” – mas não só). Quanto a isso, cabe a cada um decidir sobre as próprias conceções de justiça e em que promessas acreditar, tendo em conta a orientação das críticas contra a independência dos juízes e a presunção de inocência.

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