www.publico.ptopiniao@publico.pt - 26 jan. 00:05

A impotência política-administrativa do Estado e as presidenciais

A impotência política-administrativa do Estado e as presidenciais

Marcelo terá de ser mais exigente. Para o PSD e o CDS, só uma oposição sistemática, forte, pode evitar o enraizamento de uma direita radical, de sinal populista.

1. No domingo, todos os eleitores puderam experimentar fisicamente o grau de incompetência e de descaso a que chegou a nossa governação. A circunstância de os boletins de voto serem encabeçados por um “candidato-fantasma” é um símbolo eloquente da incúria e da degradação dos serviços públicos. Nunca antes tal acontecera em Portugal. Esta falha indesculpável, que infelizmente parodia a democracia portuguesa, tem um responsável: o governo e o ministro da Administração Interna. Ela não provoca mortes nem vítimas, não tem efeitos directos sobre a economia ou o desenvolvimento futuro do país. Mas diz muito sobre o nível de paralisia e incapacidade que atinge o governo. Em matéria de administração eleitoral, é apenas a ponta de um iceberg. A organização do “voto antecipado” foi um rotundo fracasso, com filas e esperas intermináveis. Num caso em que tudo era facilmente previsível, até a taxa de mobilização dos votantes. O mesmo se diga das longas filas de dia 24, num quadro de abstenção de 60 por cento. Imagine-se o que teria ocorrido se a participação eleitoral tivesse sido mais alta. Tudo isto, já para não lembrar que houve muito tempo para precaver um eventual adiamento das eleições e para contemplar o voto por correspondência (mesmo com uma revisão constitucional ad hoc). Insisto: este falhanço está longe de ter as gravíssimas consequências de outros; mas revela, em todo o seu esplendor, o grau de impotência político-administrativa a que este governo nos conduziu.

2. Muito mais grave e mais chocante foi o reconhecimento da total impreparação do governo para um cenário de novo confinamento geral que abrangesse as escolas. Como é possível que, depois da primeira vaga e logo no verão, o governo não tenha feito um plano de contingência para um cenário de segunda ou terceira vaga muito severas? Como admitir que o governo não tivesse tudo preparado para a eventualidade de ter de suspender o funcionamento presencial de alguns ciclos de ensino ou até de todos eles? Como aceitar que nada estivesse planeado ou previsto, a ponto de não ter soluções no momento em que a situação se agravasse? Uma coisa é fazer tudo para evitar o encerramento de escolas e, em particular, dos níveis básicos de aprendizagem; outra é confiar alegre e irresponsavelmente que isso nunca vai acontecer. Mesmo mais tarde, a partir de Outubro, foram muitos os países nossos congéneres que decretaram o fecho total ou parcial do sector educativo. Nem isso serviu para o governo, tarde e a más horas, contar com um desenvolvimento semelhante no país? Percebe-se agora que foi esta total impreparação, neste como noutros sectores, que levou o governo a soluçar e a hesitar nas medidas a tomar logo no início de Janeiro. O governo adiou sucessivamente medidas absolutamente necessárias – e com isso contribuiu seriamente para o agravamento da pandemia, para o acréscimo de mortes e a lotação dos hospitais –, simplesmente porque não tinha nenhum plano de contingência. A relutância em “fechar” certos níveis de ensino (e depois todos) só pode explicar-se porque ela ia pôr a nu a total impreparação do governo. Como se isso não bastasse, quando, a reboque de uma catástrofe, impõe o encerramento total das escolas, decide proibir o ensino à distância em todas as escolas (públicas e privadas) que para ele se tinham preparado. Não é apenas uma “ordem” grosseiramente inconstitucional, é uma medida de puro e simples encobrimento. Encobrimento do amadorismo, da impreparação e da incúria que seriam trazidos à luz do dia pela comparação fatal entre previdentes e imprevidentes.

3. Pior, muito pior, mas exigindo recato e contenção nas palavras, é a gestão da crise da saúde. A obstinação em não querer tomar medidas no Natal nem na semana a seguir ao Natal, nem depois do Ano Novo, nem antes de 12 de Janeiro, nem de modo assumido, radical e expedito depois dessa data, diz tudo sobre a responsabilidade directa do governo – e aqui com total implicação do primeiro-ministro – no agravamento brutal da pandemia. A situação já não é alarmante; a situação é trágica. Só o respeito pelos mortos, pelos doentes, pelas famílias, pelos profissionais de saúde, pelas dezenas de milhar de pessoas que estão na linha da frente, nos pode impedir, aqui e agora, de apurar e pedir responsabilidades. Mas, ao menos, podemos exigir responsabilidade! Não há como iludir e mais vale assumir: temos diante de nós dois ou três meses dos mais difíceis e terríveis da nossa existência colectiva. Vamos ter de nos ajudar e vamos precisar de ajuda.

4. Nesta exacta conjuntura, as presidenciais dão-nos sinais claros. O PS para lá da perda por falta de comparência, eximiu-se a qualquer responsabilização pela tragédia em curso. A derrota da extrema-esquerda correspondeu ao preço a pagar pela conivência ambígua e de duplo padrão. Ana Gomes, demasiado colada à ala esquerda do PS, teve a dignidade de ir à luta. A Iniciativa Liberal consolidou o voto urbano, mas não catalisou o descontentamento de centro ou de direita.

O resultado de Ventura, ao invés do que muitos crêem e até desejam (mesmo nas esquerdas), não é ainda estrutural; é essencialmente de insatisfação e de protesto. Mas deixa duas mensagens expressivas. Uma ao Presidente Marcelo, outra ao PSD e ao CDS. Sendo Marcelo, segundo o próprio, o candidato da direita social, é preocupante que não tenha sido capaz de atrair esse voto. Só a excessiva complacência e tolerância com o governo PS explica essa incapacidade. A mensagem é óbvia: Marcelo terá de ser mais exigente. Para o PSD e o CDS, os riscos de voto de protesto se volver em voto estrutural e sistémico devem ser levados a sério. A mensagem é ostensiva: só uma oposição sistemática, forte, presente e dotada permanentemente de uma agenda alternativa pode evitar o enraizamento de uma direita radical, de sinal populista.

SIM Marcelo Rebelo de Sousa. Teve o melhor resultado em reeleição depois de Soares; venceu em todos os concelhos; superou o espectro da abstenção. Nesta hora duríssima, é sem dúvida o português certo no lugar certo. 

NÃO Ministra da Justiça-Procurador europeu. No debate sobre a nomeação, nem uma única voz socialista europeia defendeu o governo português; ao invés, Verdes, Liberais e PPE (metade do Parlamento) exigiram responsabilidades.

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