24.sapo.ptSamuel de Paiva Pires - 25 jan. 18:10

Bem-vindos ao teatro do absurdo

Bem-vindos ao teatro do absurdo

As eleições presidenciais de 2021 foram certamente as mais surreais da nossa história recente. Desde logo porque se realizaram no período mais crítico da pandemia, antecipado há meses por ...

As eleições presidenciais de 2021 foram certamente as mais surreais da nossa história recente. Desde logo porque se realizaram no período mais crítico da pandemia, antecipado há meses por médicos e epidemiologistas, mas olimpicamente ignorado pelos agentes políticos.

Nem o adiamento de eleições em dezenas de outros países, nem as eleições nos EUA, com votação por correspondência e presencial ao longo de vários dias, foram suficientes para levar o Governo e a Comissão Nacional de Eleições a planear um acto eleitoral diferente do habitual e adequado às actuais circunstâncias. Por outro lado, Presidente da República, partidos e deputados à Assembleia da República não quiseram atempadamente debruçar-se sobre a possibilidade de adiamento, escudando-se na Constituição quando já era tarde demais. A lei da inércia não tem qualquer impacto na política portuguesa, permeada pelo pensar baixinho e por uma débil capacidade de planeamento, de que a gestão da resposta à pandemia é só a mais recente e trágica manifestação.

Nada disto obstou a apelos ao voto sob o sofisma de que “a democracia não está suspensa”, como se o regime político da democracia liberal fosse caracterizado somente pela participação eleitoral ou ficasse em causa por as eleições serem adiadas pelo período necessário à atenuação da situação sanitária. O absurdo ficou ainda mais patente quando o incumbente, em pleno estado de emergência e confinamento, decidiu apelar a que os portugueses saíssem de casa para votar. Consagrada a excepção às restrições à circulação para depositar os votos nas urnas, vale a pena salientar que esta foi apenas mais uma das muitas que os membros da classe política não se têm coibido de decretar, demonstrando à saciedade como aqui e agora se aplica o 'orwelliano' adágio de que somos todos iguais, mas uns são mais iguais do que outros. Nuns dias apelidam os portugueses de irresponsáveis e atribuem-lhes culpas pelos terríveis números da pandemia, noutros pedem-lhes um sobressalto cívico e que coloquem em risco a sua saúde para legitimarem um regime em que à crónica elevada taxa de abstenção se veio juntar a ameaça populista de direita que os políticos tradicionais não têm sabido descodificar nem combater.

E para quê? Para votar numas eleições cuja campanha foi pouco edificante, marcada por insultos, chavões anacrónicos, o já clássico desconhecimento dos poderes presidenciais e em que apenas um dos candidatos, por sinal o vencedor, tem vocação e preparação para ser Chefe de Estado. Quem não se quisesse abster também poderia colocar a cruzinha em Eduardo Batista, o não-candidato que com apenas 11 assinaturas, seis delas apenas válidas, teve direito a encimar o boletim de voto.

Claro que este quadro surrealista não ficaria completo sem a noite eleitoral. As sondagens acertaram e, sem surpresa, Marcelo Rebelo de Sousa foi reeleito. Logo correu o líder da agremiação do Largo do Caldas a afirmar que “todos os objectivos do CDS para esta eleição foram conseguidos”, fazendo lembrar aquele aluno que, num trabalho de grupo, não dá qualquer contributo, mas aparece na apresentação a colher os louros do trabalho dos colegas.

À esquerda, João Ferreira ignorou a transferência de voto de eleitorado tipicamente comunista para o Chega, Marisa Matias não conseguiu disfarçar a desilusão e Ana Gomes não foi além de um fraco prémio de consolação.

Vitorino Silva, que marcou a campanha com mensagens simples e desarmantes em momentos genuínos que ficaram na memória colectiva e demonstraram um apurado sentido mediático, foi igual a si próprio e talvez possa aspirar a ser eleito deputado nas próximas eleições legislativas – merece-o e o país também.

Tiago Mayan, que partiu para esta corrida como ilustre desconhecido, fez um percurso interessante e teve um resultado honroso, mas ainda não conseguiu ultrapassar o notório amadorismo. Duas lições que a Iniciativa Liberal pode retirar deste resultado: no campo das ideias e da sua tradução em propostas políticas, é preciso ir muito além do foco nos impostos; no campo das pessoas, a escolha dos candidatos importa. Até pode haver uma “onda liberal”, só que há um tsunami populista que arrasta vários segmentos do eleitorado e extravasa largamente o eixo Foz-Avenida de Roma-Cascais ao qual a IL apela. A democracia também é demografia.

Quando poderíamos pensar que o teatro do absurdo já teria terminado, eis que aparece Rui Rio, líder do PSD, maior partido da oposição e de que Marcelo Rebelo Sousa é uma figura histórica, a dedicar grande parte da sua alocução aos resultados de André Ventura, elogiando-o por vencer em concelhos onde o PSD nunca venceu. Foi mais uma confissão de impotência no que diz respeito à resolução da crise que aflige a direita desde 2015.

Ventura, por seu turno, cumpriu com o prometido e demitiu-se pela segunda vez, para ser certamente reeleito pelos militantes do Chega em nova votação ao estilo norte-coreano. O autoproclamado candidato anti-sistema é, afinal, igual aos outros nos jogos de sombras e teatrocracia. Pode ter saído do sistema, mas o sistema nunca sairá dele.

Salvou-se o bom discurso de Marcelo Rebelo de Sousa, uma espécie de Presidente-Rei do Portugal contemporâneo, numa noite que representa, por diversas razões, um novo capítulo da história democrática. O regime precisa de se modernizar para promover uma maior participação eleitoral e aprofundar a representatividade e tem forçosamente de responder aos problemas económicos e sociais que enfrentamos para evitar a fragmentação social e a polarização política em que o populismo medra. Marcelo demonstrou ter consciência disto mesmo, mas encontra-se perante uma conjuntura de difícil gestão. Tanto a esquerda como a direita democráticas têm de se regenerar e reconfigurar para procurarem reconquistar aqueles que se sentem injustiçados e ignorados pelo sistema. A contagem decrescente já começou.

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