www.publico.ptpublico@publico.pt - 25 jan. 13:32

O coração ainda bate. O tempo suspenso

O coração ainda bate. O tempo suspenso

Os dias estão turvos e nós somos bons a domesticar os nossos sonhos.

Era um casaco comprido de xadrez. Estava ali na montra há muitos dias e eu passava e hesitava entre os molhos de flores à venda que o homem tatuado tirava da carrinha, e a montra onde se anunciavam saldos. As flores, eu sei, têm o tempo contado, e os saldos também, mas eu não conseguia entrar na loja pensando agora como todos: será que o uso ainda este ano?

Era só um casaco de xadrez mas agora está na ‘minha’ montra pela impossibilidade de o ir buscar. Na vez seguinte que saí à rua, já depois de as ruas se terem esvaziado, a montra estava vestida com o mesmo casaco. Era o tempo suspenso de onde não conseguimos sair.

O casaco de xadrez que nunca ousei experimentar, começou a ocupar todos os dias a minha cabeça. Há agora em mim o vazio de todas as ruas e o mundo tem um recado enorme a dizer: “Volto já!”. Essa inquietação de nunca sabermos quando volta quem assegura voltar já…

Tenho medo que o casaco me veja passar demasiadas vezes naquela rua, nessa estação sem nome da qual não saímos, a do tempo suspenso.

O vazio demorou a chegar. Foi o casaco. Foi ver o casaco sem dono e eu ter passado a lamentar nunca ter entrado na loja. É como quando um amor acaba e sabemos que já não há regresso. Ser Verão com um casaco de Inverno nas mãos.

Na avenida larga que vai dar à Igreja, pergunto-me agora por tudo o que ficou pendente: as molduras que mandei fazer, os collants que não comprei, se o tempo triste vai deixar as flores ainda bonitas… e o homem tatuado de cabelos longos, o que fará ele em dias que continuam compridos? E a mulher que num certo dia pôs o casaco na montra, esperando que eu e outros o comprássemos, lembrar-se-á de o mudar? É como se tivéssemos estendido a roupa lá fora e nunca mais a fôssemos apanhar. O desalento não comunica com os braços. Foi o desalento que me fez ver o casaco e não o ir buscar.

Quando a Primavera rompeu e eu me empurrei para passeios mais longos noutras ruas, quando o comércio reabriu e ainda nos diziam “vai ficar tudo bem”, entrávamos nas lojas e as pessoas não estavam sufocadas pela máscara: era a asfixia de não ter com quem falar. As pessoas têm demasiadas palavras dentro delas que não estão a gastar. Nessa ingenuidade constrangedora que o tempo suspenso me trouxe, acredito que as melhores – todas - as palavras virão. E o casaco acabará por deixar a montra. Mas não sei se vai ficar tudo bem. Não sei se vamos esquecer o medo, se vamos voltar a pintar os lábios, se voltaremos a dançar e a abraçar. Tenho medo do que a apatia nos está a fazer. Uns esperam pelos números do dia, outros procuram a máscara que é um colete salva-vidas. Só isso.

Facilmente os modulamos no botão do mínimo. A megalomania da esperança está adiada. Como o casaco de xadrez pendurado ali na montra. Sem o vigor dos braços do homem tatuado que vendia flores enquanto agarrava no cabelo longo.

Pode ser que o desalento não tome conta dele. Que não baixe esses braços. Pode ser que o casaco ainda lá esteja a tempo de o usar.

Fiquemos do lado de fora do que se vive aguardando que o “Volto já” seja breve.

Espero que o casaco me sirva. E a minha esperança seja um tamanho grande.

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