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Visão | A Covid-19 levou-nos ao tapete

Visão | A Covid-19 levou-nos ao tapete

A situação atual da pandemia em Portugal tem sido, em momentos diferentes, vivida em quase todos os países, o que nos remete para outra questão relevante: o vírus não se dá a conhecer, altera as formas de intervir e apresenta-se com diferentes roupagens. Ou seja, parece ir sempre à frente, criando dificuldades novas e surpreendentes, aos investigadores, aos infeciologistas, aos políticos e à gestão dos serviços de saúde

O processo de desenvolvimento desta pandemia, que todos nós percebíamos que ia ser longo e difícil, atingiu, na entrada do novo ano, o ponto mais dramático e provocou o descontrolo na capacidade de resposta.

Nos primeiros 20 dias de janeiro tivemos cerca de 30 % dos infetados acumulados desde março do ano passado. Foram cerca de 8400 novos casos, em média, por dia, e um potencial de óbitos próximo das 2800 pessoas, em 20 dias. O impacto desta calamidade tem-se traduzido no aumento das dificuldades de resposta do SNS, que viu saltar quase para o dobro o número de doentes internados por COVID, o que provocou o encerramento generalizado da atividade programada para os outros doentes.

Nestes processos há sempre três níveis de intervenção e de responsabilidade: a) o político, em que se definem, a estratégia, os meios e as medidas de prevenção e de resposta; b) o operacional, em que os serviços atuam nas vertentes de abordagem definidas, umas preventivas e de transmissão de informação, outras de resposta aos doentes infetados e à sua reabilitação; c) o do cidadão, portador de conhecimento e condicionado pelas decisões políticas, cujo comportamento pode ser decisivo. As falhas em cada um destes planos pode deitar por terra todo o trabalho desenvolvido ou reduzir a eficácia e a eficiências das respostas.

Importará dizer que a situação atual da pandemia em Portugal tem sido, em momentos diferentes, vivida em quase todos os países, o que nos remete para outra questão relevante: o vírus não se dá a conhecer, altera as formas de intervir e apresenta-se com diferentes roupagens. Ou seja, parece ir sempre à frente, criando dificuldades novas e surpreendentes, aos investigadores, aos infeciologistas, aos políticos e à gestão dos serviços de saúde.

1. A responsabilidade política

Os governos, por todo o mundo, adotaram, inicialmente, um de dois caminhos para combater o vírus: a) confiando na sua baixa letalidade houve os que se focassem na rápida tentativa de imunidade de grupo e deixassem que o contágio evoluísse, sem especiais medidas de prevenção; b) em sentido oposto, e talvez maioritário, posicionaram-se os países que recearam os efeitos deletérios do vírus e adotaram fortes medidas de confinamento.

Os resultados rapidamente deram razão ao caminho do confinamento, como, aliás, Portugal bem provou com as medidas radicais tomadas na primeira vaga. Os casos começaram a baixar duas a três semanas depois, os óbitos um pouco mais tarde e os internamentos nunca foram um problema. Passamos um verão com o vírus relativamente controlado e a economia em retoma.

A partir dos primeiros dias de outubro começou a desenhar-se a segunda vaga, de forma consistente e imparável e, estranhamente, as autoridades ficaram numa expetativa paralisante sobre o que iria acontecer. De nenhum lado, governo, presidente da república e partidos políticos, se ouviram vozes a pedir ou promover uma intervenção antecipatória sobre o que iria ocorrer. E a segunda vaga entrou em força até ao confinamento ditado em 6 de novembro. O objetivo, pueril, seria salvar o Natal, arrastando a opinião pública para a ideia de que um pequeno sacrifício, então, nos permitiria abrir as portas ao Pai Natal. Nada de mais ilusório e perigoso. O confinamento, sério e consequente, deveria ter sido iniciado no princípio de outubro e mantido no período de Natal. O governo e o presidente da república cometeram aqui um erro de cálculo, só desculpável porque dos seus assessores técnicos e das audiências aos partidos políticos e às forças sociais, não resultaram propostas diferentes. Mas é para estes momentos que precisamos de líderes políticos, que assumam o comando das situações, antecipem os problemas e não tenham medo das antipatias ou das inconveniências. O interesse público deve estar sempre muito acima do que garantir a realização de um congresso partidário ou de podermos ir ao teatro, como bem percebemos aquando da primeira vaga e da liderança que o governo aí soube assumir.

Agora, vamos já no terceiro ajustamento às medidas de confinamento, em menos de uma semana. Na versão original as exceções e alguns horários e circulações de fim-de-semana eram bastante alargadas, e foram restringidas. Presentemente, é a questão das escolas que marca o tempo político. Acaba de ser determinado o seu encerramento, uma medida que já deveria ter sido tomada há mais tempo. Convém dizer que o número de jovens infetados tem subido bastante nas últimas duas semanas, depois da reabertura das aulas. O peso dos novos casos em pessoas com menos de 20 anos tem oscilado, nos últimos dias, entre os 15 e os 17% do total diário, o que diz bem da importância crescente deste grupo etário, sobretudo como via de transmissão do vírus para grupos mais vulneráveis. A intrigante resistência com que o primeiro-ministro tem mantido as escolas abertas, contra a opinião técnica da maioria dos especialistas, é motivada por questões de sociabilização e de aprendizagem que são importantes, mas podem ser proteladas e, talvez, pelo medo de uma maior abstenção no dia das eleições presidenciais. Neste momento dramático, esses valores estão muito aquém do valor das vidas que se perdem, irreversivelmente, todos os dias.

2. O nível operacional

A resposta à COVID tem sido, quase em exclusivo, atributo do SNS, que tem manifestado uma resiliência à prova de bala, sobretudo ao nível hospitalar. Na primeira vaga, e ao contrário do que se fez constar, sem qualquer comprovação estatística, diga-se, os serviços estiveram a trabalhar sem pressão, reduziram a atividade geral e nenhum doente COVID teve falta de resposta, mesmo em cuidados intensivos. Em 2020, os hospitais portugueses trataram menos 315 mil doentes em internamento do que no ano anterior (-34%), e tiveram menos 19 mil óbitos registados (-37%), com uma ligeira redução da taxa de mortalidade. Estes números incluem já os doentes COVID, sobre os quais continuamos a não dispor de uma informação específica que permita caracterizá-los. Entretanto, o Ministério da Saúde aumentou para o dobro a capacidade em cuidados intensivos, transformou unidades de internamento, aumentou os recursos humanos em mais de 8 mil profissionais, médicos, enfermeiros, técnicos superiores e assistentes técnicos e operacionais, para capacitar as unidades e servir melhor os doentes. Isso tem permitido, nesta fase mais aguda, resistir à avalanche de doentes, mas percebe-se que a elasticidade da oferta tem um limite e que os doentes não COVID ficam cada vez mais para trás. O apoio do setor privado e social está cada vez mais na ordem do dia, e seria importante preparar rapidamente um acordo – quadro de colaboração, geral e para todo o país. Sem requisições- civis, mas privilegiando a negociação, como muito bem avisou a Ministra da Saúde.

Temos tido falhas ao nível da saúde pública, agora que o número de novos casos se tornou incontrolável. Os inquéritos epidemiológicos atrasam-se de forma comprometedora, os focos de infeção não são cabal e atempadamente identificados e o rastreio dos doentes não é feito adequadamente. Tudo isto é fruto da menorização com que este setor tem sido historicamente encarado, na comparação com a medicina curativa, sempre em expansão e desenvolvimento.

Também os cuidados primários têm tido uma intervenção menor nesta pandemia. Muitos dos casos COVID que chegam aos hospitais deveriam ser rastreados e tratados nos centros de saúde e nas unidades de saúde familiares, libertando espaço e recursos humanos das urgências, que tanta falta fazem para doentes graves, como temos assistido nos últimos dias.

3. A responsabilidade do cidadão

É sempre a componente menos controlável e que contém mais imprevisibilidade. Nunca sabemos ao certo como é que as pessoas reagem às medidas de confinamento: o grau de adesão, o seu entendimento, os hábitos de vida e os caprichos pessoais podem condicionar o sucesso de decisões que podem parecer justas e razoáveis. Comunicar bem, com clareza e firmeza o que se pretende, é um bom princípio de conversa. Confinar às pinguinhas, com avanços e recuos, é um mau princípio, que retira credibilidade e faz perder autoridade.

Os portugueses cumpriram exemplarmente o confinamento da primavera. Mas agora, em que as coisas estão muito pior, parecem muito mais relaxados e com menos medo. Afinal a promessa da vacina, parece ter permitido ver já o fundo do túnel e a salvação. Somos um povo de brandos costumes e rapidamente relativizamos os riscos e atrevemo-nos a corre-los. Os resultados estão à vista e as coisas só vão lá com uma autoridade sem medo nem complexos em punir os incumpridores. Se assim for, no fim de fevereiro estaremos um pouco melhor.

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