visao.sapo.ptvisao.sapo.pt - 25 jan. 22:56

Visão | Inspetores do SEF acusados de homicídio no caso do ucraniano morto no aeroporto lançam suspeitas sobre seguranças privados

Visão | Inspetores do SEF acusados de homicídio no caso do ucraniano morto no aeroporto lançam suspeitas sobre seguranças privados

Em julgamento, os três arguidos também vão alegar que não foi disponibilizado a Ihor Homeniuk um medicamento para a síndrome de abstinência alcoólica, que lhe tinha sido receitado no Hospital de Santa Maria, e cuja falta “contribuiu para o agravamento da sua situação clínica”

Nas contestações à acusação do Ministério Público (MP) que entregaram ao coletivo de juízes do Tribunal Central Criminal de Lisboa, que os vai julgar por homicídio qualificado de Ihor Homeniuk, documentos a que a VISÃO teve acesso, os inspetores do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) Luís Silva e Bruno Sousa negam qualquer responsabilidade no crime que lhes é atribuído, e pelo qual incorrem na pena máxima (25 anos de cadeia). É notório que a estratégia da defesa daqueles dois arguidos está já concertada, ao lançar suspeitas sobre a atuação de dois seguranças da empresa Prestibel, à guarda dos quais Ihor Homeniuk esteve longas horas, a que acresce o facto de ao cidadão ucraniano não ter sido disponibilizado um medicamento para a síndrome de abstinência alcoólica, que lhe fora receitado no Hospital de Santa Maria, o que trouxe supostas graves consequências para o estado da vítima.

Com o início do julgamento agendado para o próximo dia 2, Luís Silva e Bruno Sousa, defendidos, respetivamente, pelos advogados Maria Manuel Candal e Ricardo Sá Fernandes, alegam que “usaram apenas a força necessária para imobilizar” Ihor Homeniuk, “tendo-o algemado e deixado na posição de decúbito lateral”. Nesta alegação incluem o terceiro arguido, inspetor Duarte Laja, cujo advogado, Ricardo Serrano Vieira, apenas apresentou aos juízes a lista de testemunhas de defesa do seu constituinte.

Ao contrário do que sustenta o despacho de acusação do MP, os arguidos negam que “desferiram pontapés ou socos” em Homeniuk, ou que o agrediram. “Pelo contrário, libertaram-no das fitas adesivas que o prendiam e procuraram imobilizá-lo de forma adequada”, alegam. E, “antes de saírem, entregaram as chaves das algemas aos vigilantes da Prestibel, com indicação de que Ihor Homeniuk poderia ser desalgemado, quando estivesse mais calmo”, dizem.

Os três inspetores foram chamados ao Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT) do aeroporto de Lisboa, na manhã de 12 de março último (dia em que Homeniuk morreu), “a fim de avaliarem a situação” daquele cidadão ucraniano, “que se teria revelado bastante problemático e agressivo durante a noite”, relatam nas contestações à acusação. Chegaram ao EECIT às 8 e 32 e aí permaneceram até às 8 e 55, dizem. Deslocaram-se ao local “por uma indicação aleatória da chefia, a quem, depois da intervenção que tiveram, reportaram aquilo que fizeram”, argumentam. “Não agiram com o propósito de provocar lesões corporais em Ihor Homeniuk, não o tendo sujeitado a qualquer tratamento desumano”, insistem. Negam também pancadas com um bastão, que Luís Silva admite que levou consigo, mas que assegura não ter usado. Os inspetores dizem também que “não deixaram Ihor Homeniuk em posição de decúbito ventral, nem de qualquer forma admitiram sequer a possibilidade de lhe causarem a morte por asfixia mecânica, não se tendo conformado com isso”, ao contrário do que sustenta a acusação.

No “campo de uma das hipóteses possíveis”, o inspetor Bruno Sousa coloca a possibilidade de que Ihor Homeniuk “tenha morrido em consequência de uma asfixia mecânica, fruto de agressões que lhe podem ter fraturado os seus arcos costais”. Mas, argumenta, “as condições em que foi efetuada a autópsia não lhe permitem concluir que foi isso que aconteceu, tão deficientes foram os termos” em que o exame se realizou, “a que acresceu a inaceitável precipitação da cremação do corpo”. No entanto, “se aquela tiver sido a causa da morte” (asfixia mecânica, fruto das agressões referidas), Bruno Sousa garante que “isso não decorreu de quaisquer agressões cometidas por si nem pelos coarguidos” que com ele “estiveram na intervenção em apreço”.

Um enfermeiro e uma socorrista alertaram dois seguranças para a forma como, com fita adesiva, tinham manietado Ihor Homeniuk, de pés e mãos – a circulação sanguínea podia ser gravemente afetada

ESTRANHA REVISTA

A 10 de março, Ihor Homeniuk foi barrado por um inspetor do SEF, após desembarcar de um avião que o trouxe de Istambul. Motivo: não ter documentos que provassem que vinha a Portugal como turista. O cidadão ucraniano, de 40 anos, sofreu depois uma convulsão, sendo conduzido por inspetores do SEF ao Hospital de Santa Maria. Aqui, descrevem os arguidos, entre os medicamentos receitados por duas médicas que assistiram Ihor Homeniuk estava um remédio para a síndrome de abstinência alcoólica (designado Tiapridal ou Tiaprida) que a farmácia do aeroporto não tinha. Uma funcionária encarregue dos assuntos de natureza administrativa relacionados com o funcionamento do EECIT foi quem se dirigiu à mencionada farmácia para aviar os medicamentos prescritos pelas médicas do Santa Maria, e entendeu que não se justificava encomendar o tiapridal. Caso fosse encomendado, afirmou aquela funcionária quando inquirida, o medicamento apenas estaria disponível na manhã de 12 de março, sendo que Ihor Homeniuk tinha voo de repatriamento para Istambul agendado para as 15 e 30 de 11 de Março.

Os arguidos sublinham que a aquisição de medicamentos não era da competência daquela funcionária, mas antes da coordenadora do EECIT e, na sua ausência, de inspetores do SEF. Depois, relatam, a referida funcionária “limitou-se a reportar tal situação aos vigilantes da Prestibel, os quais, por sua vez, se limitaram a registar essa situação no Relatório Interno do EECIT, não tomando, nem aquela nem estes, nenhuma providência no sentido de diligenciar, junto do SEF, pela aquisição” do medicamento em falta noutra farmácia. Aquela funcionária sairia de serviço “desconhecendo que Ihor Homeniuk se recusara a embarcar e que, por esse motivo, permaneceria no EECIT, sem lhe ser garantido o acesso ao medicamento prescrito pelas médicas do Hospital de Santa Maria”, num cenário “desconforme com a prática, pelo SEF, no sentido de que a requisição da medicação deve ser realizada pelos inspectores da Unidade de Apoio Geral”. Argumentam os acusados que, “como se afigura evidente”, a falta daquele medicamento “contribuiu para o agravamento da situação clínica” de Homeniuk, “levando-o a manifestações cada vez mais evidentes de síndrome de abstinência do álcool”.

Pelas 15 e 28 de 11 de março, o cidadão ucraniano, à porta do avião que o levaria de volta a Istambul, recusou-se a embarcar, “não obstante os esforços envidados” por um inspetor do SEF que os arguidos identificam. E acrescentam desconhecer “em que se terão concretizado tais esforços”. De seguida, Homeniuk seria conduzido por três inspetores do SEF à Sala dos Médicos do Mundo “para a realização de uma alegada revista de segurança”, descrevem os arguidos. E, para o efeito, solicitaram a dois vigilantes da Prestibel, identificados nas contestações, “que retirassem” daquela sala “vários móveis”. Os arguidos sublinham não vislumbrarem “a necessidade de tal procedimento, desde logo se a dita revista tivesse sido efetuada de forma pacífica, tranquila, com a colaboração e, principalmente, com o consentimento do visado”.

Pelas 16 e 50 de 11 de março, após a mencionada revista, Ihor Homeniuk deu entrada na ala do EECIT destinada aos “cidadãos inadmissíveis” (INADS). É a partir daqui, recorrendo a imagens das câmaras de videovigilância e a fotogramas, que os inspetores acusados começam a elencar suspeitas sobre a atuação e o comportamento dos dois seguranças da Prestibel atrás mencionados, os quais constam do despacho de acusação do MP apenas como testemunhas. Um deles disse no inquérito-crime que, entre as 23 horas e a meia noite daquele dia 11, Homeniuk “arranja problemas” com os restantes passageiros presentes no Centro de Instalação Temporária, tenta “entrar na ala feminina”, provoca “desacatos na ala masculina” e “desarruma os colchões dos restantes indivíduos” que ali estão. O outro dirá que o cidadão ucraniano apresenta por essa altura “um comportamento incorreto, quezilento e de confronto”, e que “batia com a cabeça nos armários e tentava arrancar as calhas dos cabos elétricos”. Também por essa altura, sinalizam os arguidos, Homeniuk “havia já falhado a toma, por duas vezes, do medicamento Tiapridal”.

COMO SE FOSSE UM GARROTE

Depois da meia noite e 20 de 12 de março, o cidadão ucraniano ficou à “guarda e vigilância” daqueles seguranças privados da Prestibel, os quais entravam e saíam “por diversas vezes” da Sala dos Médicos do Mundo, onde Homeniuk tinha sido isolado, notam os acusados. Transportavam “rolos de fita adesiva” e permaneciam no interior daquela sala “por longos períodos de tempo”. Às tantas, o cidadão ucraniano começou “a bater com a cabeça nas paredes” e foi chamada uma equipa da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) para o assistir, constituída por um enfermeiro e uma socorrista. O referido enfermeiro, sublinham os acusados, afirmou no inquérito, “significativamente”, que “quando se aproximou o indivíduo encolheu-se com os braços a proteger a face, como se tivesse medo de algo – comportamento de autoproteção -, e fê-lo por diversas vezes”.

Depois de o medicar com um calmante e de chamar a atenção para a necessidade de Homeniuk tomar o remédio para a síndrome de abstinência alcoólica, de que não dispunha (e que nunca foi disponibilizado ao cidadão ucraniano), o enfermeiro saiu por instantes da sala. Quando regressou, disse no inquérito, verificou que os dois seguranças “tinham manietado Homeniuk com fita adesiva, com as mãos atadas à frente e, de igual modo, as pernas, na região entre os tornozelos e os joelhos”, notam os acusados.

O enfermeiro e a socorrista da CVP também declararam no inquérito que alertaram os dois seguranças “para os perigos da utilização indevida daquele material, suscetível de funcionar como ‘garrote’ e cortar a circulação sanguínea, tomando a iniciativa de lhes deixar umas ligaduras elásticas, mais adequadas para proceder à contenção física” de Homeniuk. Contudo, nem o enfermeiro nem a socorrista reportaram “esta situação a quem quer que seja”, lê-se nas contestações, que sublinham a forma “absolutamente irregular” como o cidadão ucraniano foi manietado, de pés e mãos, “cerca de seis horas antes da chegada ao local dos aqui arguidos”.

Os três inspetores acusados (que se encontram em prisão domiciliária desde o final de março) dizem que calçavam sapatilhas. E salientam que um dos seguranças mencionados calçava umas “botas pretas” e que o outro, cerca das oito horas da manhã de 12 de março, “tinha o pé inchado, queixando-se de dores, e coxeava”. Refutando que ele ou os dois colegas que o acompanharam na intervenção junto de Homeniuk tivessem depois proferido expressões como “hoje já não vou ao ginásio” ou “agora está sossegado”, que constam da acusação, o arguido Bruno Sousa diz desconhecer se “em algum momento” o cidadão ucraniano pediu “auxílio” ou chamou “por ajuda”. O que, acrescenta, “não se encontrava impedido” de fazer, “pelo menos no momento” em que os três acusados o “deixam à guarda e cuidados dos vigilantes, pois que não fica amordaçado”. O mesmo arguido também afirma não saber “aquilo que aconteceu com Ihor Homeniuk em praticamente todo o período relevante para os efeitos” do caso. Não sabe, sublinha, “o que aconteceu antes das 08:32h, nem depois das 08:55h do dia 12 de março”.

Para saber mais

Sabe-se, isso sim, que pelas 18 e 40 deste dia 12, na sala dos Médicos do Mundo do aeroporto de Lisboa, um médico do INEM declarou o óbito de Ihor Homeniuk, que terá agonizado durante dez horas até ser encontrado, já moribundo, por um inspetor do SEF. À tragédia segue-se o julgamento, que se antevê duro e de decisão difícil para os juízes.

NewsItem [
pubDate=2021-01-25 23:56:29.0
, url=https://visao.sapo.pt/atualidade/sociedade/2021-01-25-inspetores-do-sef-acusados-de-homicidio-no-caso-do-ucraniano-morto-no-aeroporto-lancam-suspeitas-sobre-segurancas-privados/
, host=visao.sapo.pt
, wordCount=1892
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2021_01_25_415289349_visao-inspetores-do-sef-acusados-de-homicidio-no-caso-do-ucraniano-morto-no-aeroporto-lancam-suspeitas-sobre-segurancas-privados
, topics=[sef, sociedade, inspetores, ihor homeniuk, ucraniano, aeroporto]
, sections=[sociedade, actualidade]
, score=0.000000]