24.sapo.ptLeonor Caldeira - 25 jan. 18:28

Só nos faltava agora que Abril não se cumprisse

Só nos faltava agora que Abril não se cumprisse

Findas estas eleições Presidenciais, acordei esta manhã angustiada, com um sentimento que sei que é partilhado por muita gente: recuso-me a aceitar que, no meu país, 60% das ...

Findas estas eleições Presidenciais, acordei esta manhã angustiada, com um sentimento que sei que é partilhado por muita gente: recuso-me a aceitar que, no meu país, 60% das pessoas que podem votar escolhem não o fazer, e que 12% das que votam, decidiram escolher forças autoritárias e antidemocráticas.

Ouvi com atenção os principais comentadores e analistas políticos, na televisão, na rádio e nas redes sociais, em busca de respostas, de explicações do que está a acontecer e de soluções ou de planos de ação.

São importantes as conversas sobre o que podemos fazer já, para tentarmos reanimar a participação dos cidadãos nas eleições e travar o crescimento do populismo nacionalista, pensando nas eleições autárquicas daqui a oito/nove meses e até nas legislativas daqui a dois anos e meio. Mas também sinto que estamos a perder de vista um quadro de ação mais alargado.

Pensando concretamente em Portugal – que não é a França, nem o Brasil, nem os Estados Unidos –, esse quadro mais alargado passa, pelo menos, pela consideração de dois aspetos estruturais: o primeiro, o défice de informação e de compreensão do sistema político; o segundo, da fraqueza da prática democrática na nossa cultura e da ausência de planos para a refortalecer.

Vamos, primeiro, ao elefante na sala.

Muito pouca gente em Portugal está informada e compreende o básico acerca do nosso sistema político. Como é a nossa Constituição? Que órgãos de soberania existem? Como são escolhidas as pessoas para ocupar estes cargos de poder? O que é a União Europeia e como é que funciona? Que diferenças existem entre esquerda e direita? Que impostos existem, porquê e como é que escrutinamos o seu destino? Como está regulado o trabalho, a saúde, a educação, a habitação? Como posso ter acesso à justiça e aos Tribunais? O que são mercados financeiros?

Completamos 18 anos e concedem-nos o direito ao voto, mas ninguém nos explica, de forma clara e acessível, como tudo isto funciona e o que está em causa. Algumas respostas a estas perguntas vão surgindo ao longo da nossa vida, por nos cruzarmos com burocracias ou problemas para resolver, e vamos ganhando umas noções, vagas, superficiais, parciais, sempre com a sensação de que não dominamos nada disto.

Quando ligamos a televisão ou lemos os jornais, temos a sensação de que aquelas pessoas falam e escrevem para quem já apanhou o comboio, para quem já domina os conceitos. A partir daí, só existem dois caminhos: ou fazermos um esforço ativo para nos instruirmos e tentarmos estar minimamente a par do que se passa – o que requer tempo e recursos – ou, muito simplesmente, desistimos e alienamo-nos da política – o que é particularmente tentador se as pessoas à nossa volta fizerem o mesmo.

Ora, como é natural, não existe vontade de participar naquilo que não se conhece nem se compreende. Ao contrário do que leio e oiço frequentemente em vésperas de eleições, arrisco-me a afirmar que a maioria dos abstencionistas não são motivados por uma preguiça displicente ou por uma convicção de que o seu voto não muda nada. Com probabilidade, a decisão de não votar assenta num pressuposto que é de bom-senso: para que é que eu vou votar, se percebo pouco do que se passa? Se o meu voto não for baseado numa escolha informada e esclarecida, não será melhor abster-me e deixar escolher quem percebe disto?

Estou convencida de que não se fala mais abertamente deste défice de informação e compreensão da política porque, culturalmente, consideramos que é uma vergonha admitir ou revelar ignorância. Por outro lado, quem não é ignorante e tem plataforma e audiência para falar sobre isto, tem medo de soar condescendente e ser criticado por isso.

Veja-se que este não é um problema específico de classe, embora seja (sempre) um fator a considerar. Mesmo as classes socioeconómicas mais privilegiadas são genericamente pouco esclarecidas quanto a muitos destes temas.

Acredito que este é um dos motivos que explica a abstenção em números elevados, (entre outros fenómenos), mas que, infelizmente, não tem recebido a devida atenção.

Mesmo que não se concorde com esta premissa, certamente não se obstará a que se invista mais e melhor na formação dos cidadãos sobre o funcionamento do nosso sistema político. No mais, deve ser relativamente consensual que se deve evitar que o pouco conhecimento de base que chega aos eleitores seja através de páginas avulsas na Internet, sem qualquer controlo de qualidade e rigor técnico, nem sequer de veracidade mínima.

A tarefa de dotar os cidadãos de informação e compreensão sobre o nosso sistema político deve ser primordialmente uma tarefa da Escola; em especial, da Escola Pública.

Antes dos 18 anos, idealmente no ensino secundário, tem de ser explicadas, de forma simples e acessível, mas rigorosa e tão completa quanto possível, as bases de como funciona a nossa democracia e os mínimos sobre o nosso sistema político. Não falo de ensinar aos alunos diferentes ideologias políticas; falo de ensinar sobre o atual funcionamento das instituições democráticas e de poder, e sobre os direitos e deveres básicos de cada cidadão. Algo na linha do que foi defendido no ano passado pelo Prof. Jorge Mirada, no Público.

Curiosamente, esta é uma medida que reúne consenso na sociedade portuguesa como poucas outras.

Por ocasião da discussão sobre a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, foi unânime entre políticos e comentadores que a inclusão do tema “instituições e participação democrática” era bem-vinda (embora seja manifestamente insuficiente, por estar incluída numa lista de cinco diferentes temas que devem ser “trabalhados pelo menos em dois ciclos do ensino básico”); por outro lado, já é clássica a queixa dos alunos do ensino obrigatório de que a Escola “não prepara para a vida adulta; não ensina sobre impostos, sobre política, sobre trabalho ou sobre finanças pessoais”.

No entanto, não obstante o grande consenso em redor desta necessidade e da sua manifesta importância para combater os níveis de abstenção proibitivos, não tem existido vontade política para dotar os cidadãos deste conhecimento e destas ferramentas. Talvez este seja um bom timing para o exigirmos com mais convicção.

Porém, mais informação e domínio sobre como funcionam as instituições democráticas e de poder, por si só, não basta. Pessoas muito informadas e até grandes intelectuais podem ser – e são, muitas vezes – subscritores de soluções políticas autoritárias, fascistas e antidemocráticas no geral.

É aqui que entra o segundo tema deste texto: a fraqueza das práticas democráticas na nossa cultura e a ausência de planos para a desenvolver.

Para que a democracia faça sentido enquanto proposta de sistema político, é necessário, em primeiro lugar, que o povo que decide seja e esteja informado e, para isso, livre das amarras da pobreza e da precariedade, para se dedicar a algo mais que não seja a sua sobrevivência e a da sua família e aos alívios desses pesos.

Mas, em segundo lugar, é também preciso que se cultive uma cultura em que as pessoas sejam recetivas a opiniões contrárias à sua, que estejam disponíveis para o diálogo, para a negociação e para a construção dinâmica de maiorias. Que aceitem os desideratos da transparência e do escrutínio, e, em última instância, que aceitem ser governados por quem consideram ser os seus opositores políticos, se tal resultar da vontade da maioria.

Não utilizei o verbo “cultivar” ao acaso: tudo isto se constrói ou desconstrói, consoante a vontade de quem tem maior poder. Em Portugal, associamos a democracia à liberdade e, concretamente, à Revolução do 25 de abril de 1974. Mas embora o 25 de abril seja genericamente percecionado como algo positivo pela maioria dos portugueses, falta sedimentar essa cultura de participação e de jogo democrático.

Aqui olho diretamente para as elites socioeconómicas que ontem escolheram, esclarecidamente, dar força a partidos de índole autoritária (parte considerável daqueles 12%). Em rigor, estas pessoas não são democratas: estão confortáveis em impor a sua visão do mundo aos outros; não estão interessadas no diálogo; lidam mal com a crítica e com o escrutínio; e não estão comprometidas com o progresso.

Não vamos a tempo de alterar estas simpatias antidemocráticas a tempo das eleições autárquicas deste ano nem, muito provavelmente, das eleições legislativas de 2023. Mas se a democracia está ameaçada – e, neste momento, só não vê quem não quer ver –, então a resposta tem de ser reforçá-la.

O voto é o grau mínimo da participação democrática, ou seja, a democracia portuguesa mal cumpre os mínimos.

Reforçar a democracia significa, entre outras coisas, estimular a participação das pessoas na sociedade civil: incentivando a que se juntem a associações que se dediquem a causas que lhes sejam próximas; a partidos políticos, regenerando-os com novos quadros; reforçando urgentemente o poder local, designadamente através do processo de regionalização; investindo na criação de assembleias de cidadãos, em que qualquer pessoa possa integrar o debate sobre a regulação de determinado tema; impor uma limitação de mandato único aos deputados da Assembleia da Républica que permita maior rotatividade, combatendo os “políticos de profissão” e abrindo as portas da democracia a mais gente.

Se queremos reforçar a democracia, temos de lutar para ter cidadãos informados, dotados de espírito crítico, envolvidos na vida pública e exigentes com quem governa e com quem escrutina.

Há muito trabalho a fazer, mas também há muito democratas comprometidos com esse trabalho.

Neste dia em que acordámos ameaçados, resta-nos arregaçar as mangas e inspirarmo-nos nas palavras de Ary dos Santos: “De tudo o que Abril abriu / ainda pouco se disse / e só nos faltava agora / que este Abril não se cumprisse. / Só nos faltava que os cães / viessem ferrar o dente / na carne dos capitães / que se arriscaram na frente.”

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