observador.ptobservador.pt - 25 jan. 20:56

Novas terapias para a epilepsia e doenças mentais

Novas terapias para a epilepsia e doenças mentais

A investigadora Ana Luísa Carvalho descobriu uma nova função para uma proteína que pode ajudar a controlar a epilepsia e doenças neuropsiquiátricas – ...
Uma iniciativa

E se houvesse uma proteína específica nos nossos neurónios que, sendo regulada, poderia evitar que doentes com esquizofrenia tivessem convulsões? E que poderia também diminuir o risco de crises em pacientes com epilepsia? É isso que Ana Luísa Carvalho e uma equipa de mais 11 investigadores estão a tentar perceber no Centro de Neurociências e Biologia Celular (CNC) da Universidade de Coimbra (UC), através da validação da prova de conceito – depois de terem descoberto que a proteína sináptica Stargazina [que existe na membrana à superfície dos neurónios] pode inibir essas reações.

O que nós encontramos que é novo, é que essa proteína nos neurónios regula uma família de canais de potássio que são muito importantes para inibir a excitabilidade, para evitar que os neurónios se tornem demasiado ativos.” Depois de comprovadas todas as hipóteses, a descoberta poderá ser utilizada em medicamentos de nova geração, que podem aumentar a qualidade de vida desses doentes.

O projeto liderado pela investigadora de Coimbra chama-se “MStar: Potassium Channel Dysfunction in models of Neurodevelopmental Disorders” [Disfunção do Canal de Potássio em Modelos de Desordens do Neurodesenvolvimento] e quer compreender as ligações entre doenças neuropsiquiátricas e epilepsia, para possibilitar que se desenvolvam melhores tratamentos.

E por que é que isto é importante nas doenças do neurodesenvolvimento?, questiona Ana Luísa Carvalho, encadeando logo o discurso na resposta. “Porque nós sabemos que há alterações nesta proteína associadas a deficiência intelectual e a esquizofrenia e é muito frequente os doentes com deficiência intelectual e de esquizofrenia terem também epilepsia.”

De acordo com a vice-presidente do CNC, as doenças neuropsiquiátricas são a segunda maior causa do comprometimento de uma vida saudável, com anos perdidos por incapacidade. Além disso, são frequentemente agravadas pela epilepsia. A questão é que ainda não compreendemos bem de que forma as patologias estão ligadas.

Neurónios em cultura onde estão marcadas as sinapses, locais de comunicação entre estas células, na qual a Stargazina desempenha um papel importante

“Nós julgamos que alterações na função da proteína Stargazina levam, simultaneamente, às alterações cognitivas associadas às doenças do neurodesenvolvimento e às alterações na atividade dos neurónios que desencadeiam a epilepsia”, explica a também professora universitária.

No passado, já se comprovara que a Stargazina é importante na comunicação entre neurónios. Aliás, o grupo do MStar parte de resultados preliminares. O que esta equipa conseguiu foi compreender e descodificar um novo mecanismo que as células têm de regular a atividade de canais de potássio, através dessa proteína sináptica. E, dessa forma, regular a sua excitabilidade.

O que fizemos foi ver quais são os parceiros que a Stargazina tem, ou seja, quais são as outras proteínas a que ela normalmente está ligada e através das quais depois exerce os seus efeitos na célula.”

A abordagem é experimental. Envolve metodologias de biologia molecular, de bioquímica, de biologia celular. “Fazemos também eletrofisiologia, uma metodologia que nos permite medir a atividade dos neurónios. E fazemos análise do comportamento animal, neste caso de ratinhos”. Além disso, têm uma colaboração com um grupo de biologia computacional no CNC e com um grupo na Universidade de Bordéus, em França, que utiliza microscopia de super-resolução.

Conseguiram, então, perceber que a Stargazina aumenta a atividade de uma família de canais de potássio. Se esta proteína não estiver presente nos neurónios, ou estiver mutada, esses canais têm uma atividade muito menor. É dessa forma que o processo de regulação fica comprometido, levando a que ocorra epilepsia e outras possíveis disfunções do foro neuropsiquiátrico. Embora a equipa esteja agora empenhada em garantir essa validação, essa é já uma “certeza”.

Já para chegar até ao laboratório da cientista Ana Luísa Carvalho, no segundo piso do CNC, é preciso vencer a dúvida. Será que estamos no lugar certo? Será que os corredores cinzentos e silenciosos, bafejados pela historicidade, enquanto património intangível da academia conimbricense, vão conduzir a uma sala com uma família de microscópios e suportes de tubos de cores azul, verdes, amarelo, fúcsia?

Nuno Beltrão e Marina Rodrigues, alunos de doutoramento, Ana Luísa Carvalho, líder de grupo, e Ângela Inácio, investigadora, são alguns elementos da equipa de 12 pessoas do projeto MStar 4 fotos

“Já nos disseram que parecia um laboratório escondido”, reconhece a cientista, desfazendo a hesitação dos visitantes, divertida com a ideia de trabalhar num secreto “ambiente inesperado”. Outrora, este foi o local onde funcionou a Faculdade de Medicina da UC. Hoje, além de ser a base dos serviços de saúde da universidade e de albergar algumas partes administrativas da universidade, acolhe várias unidades de investigação.

Há investigadores das Faculdades de Medicina, Farmácia, Ciências e Tecnologia, do Instituto de Investigação Interdisciplinar, do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e do Instituto Português de Oncologia. “É um ambiente muito animado, de grande interação entre as pessoas, com muita gente nova.”

O CNC faz parte do consórcio de investigação do Centro de Inovação em Biomedicina e Biotecnologia. É um Laboratório Associado, sendo uma unidade de Investigação e Desenvolvimento financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

Ana Luísa Carvalho faz questão de realçar que foi precisamente dessa relação privilegiada de investigação transversal e abertura para o novo que surgiu o MStar. “O projeto já começou há mais de dez anos com investigação fundamental, que é de onde surgem as novas ideias em ciência.”

Ao longo de toda a conversa, a neurocientista reforçará a ideia de que a ciência fundamental não pode ser negligenciada. A ênfase repetida, explica, relaciona-se com um lugar-comum que a maioria dos cientistas faz questão de desmistificar aos olhos da comunidade não científica. “Muitas vezes perguntam-nos: ‘mas para que serve o que fazes?’ Esta investigação é a evidência dessa ‘utilidade’.”

“Este trabalho mais focado na Stargazina e nos canais de potássio começou com o trabalho de mestrado da aluna Marina Rodrigues, que está agora a fazer doutoramento no laboratório”, explica a investigadora enquanto deixa transparecer um tom de orgulho. “Realmente devo agradecer-lhe pela disponibilidade que ela teve de ir à procura, de apostar neste projeto e de fazer as experiências iniciais que mostraram que a Stargazina interage com os canais de potássio e os regula”.

A cientista de 50 anos não gosta de se isolar. Reforça que o “MStar” é um trabalho em equipa. Garante que qualquer cientista tem de ter a mente aberta, flexível, ao mesmo tempo que é rigorosa e criteriosa. Ela, que é apaixonada por lecionar – só este ano são cerca de duzentos alunos – admite que lhe é vital trocar ideias e promover encontros científicos. Acredita que a formação científica deveria ter inclusive melhor base das Humanidades, “sobretudo em História”.

Uma vez por semana, a equipa do “Mstar” reúne-se, a que se juntam equipas de outras áreas das Neurociências, como investigadores que estudam fatores tróficos no cérebro ou circuitos neuronais com interesse em autismo. “Este ambiente colaborativo é o que nos faz avançar.

Para garantir que mantinha essa abertura de mente, depois de se licenciar em Bioquímica nos anos 1990, na Faculdade de Ciências e Tecnologia da UC, com média de 17 valores, a cientista achou que era importante sair do seu local de conforto.

Em 1998, durante o Doutoramento, fez investigação na Faculdade de Medicina da Universidade Johns Hopkins, nos EUA. Em 2006 tirou uma licença sabática e rumou ao Canadá para trabalhar com a cientista Ann Marie Craig, da University of British Columbia, em Vancouver, uma referência em Neurobiologia (especificamente em sinaptogénese e plasticidade sináptica, áreas que fazem brilhar os olhos da líder do MStar). Foi aliás com essa investigadora que Ana Luísa Carvalho admite ter ganho “muita maturidade científica”.

A proteína sináptica Stargazina [que existe na membrana à superfície dos neurónios] pode inibir convulsões ou crises de epilepsia. O projeto liderado por Ana Luísa Carvalho quer compreender as ligações entre doenças neuropsiquiátricas e epilepsia, para possibilitar o desenvolvimento de melhores tratamentos

Ela fala pausadamente. O olhar é sereno e magnético. E os olhos não estão raiados de vermelhidão, ao contrário do que seria de esperar de alguém que passa largas horas a analisar ao microscópio as pequenas fatias de cérebro de ratinhos.

Garante que quando era mais nova não pensava em ser cientista. Tinha “interesses muito alargados”. Sempre gostou da área das Humanidades, embora no secundário tenha optado pelas ciências exatas. “Achei que era muito importante para conhecer a realidade. Achei na altura, de uma forma errada, que a formação nas Humanidades era mais fácil de obter como autodidata. Hoje em dia reconheço que não é bem assim.”

Ana Luísa não tem muito tempo livre. Quando consegue alguns momentos, gosta de estar com as filhas de 12 e 18 anos. “Gosto de vê-las crescer, de contribuir para isso da melhor forma e de partilhar com elas também o entusiasmo pelo trabalho, que faço com imenso prazer”. Joga ténis (“paixão de adolescência que recuperei há sete anos”) e gosta bastante de ler. “A literatura tem tido um papel importante na minha vida. Acho que um bom livro é o melhor dos companheiros. É o equivalente a um bom artigo científico, em termos de estímulo intelectual.” Recentemente leu Jazz de Toni Morrison. E o livro que a marcou foi A Sibila, de Agustina Bessa-Luís.

A cientista sublinha a devida destrinça entre ficção e ciência. E reflete melhor a ideia de que “também a ciência é uma exploração da realidade (…) porque as hipóteses que nós colocamos são a base da nossa imaginação”. A equipa do MStar tem agora de garantir que a ideia que têm é sólida, suportando-a com “múltiplas evidências complementares”, encontrando um “mecanismo que tenha potencial terapêutico”.

“Vamos começar em paralelo a fazer algum trabalho para procurar fármacos que regulem este mecanismo [da proteína Stargazina], mas depois precisaremos de mais financiamento e de outras colaborações para fazer pesquisa em larga escala de fármacos que possam regular este mecanismo”. Reconhece, no entanto, que há ainda um longo caminho a percorrer. Mas mantém a mente aberta: se tudo correr conforme previsto, poderemos estar perante novas possibilidades de tratar a epilepsia e as doenças mentais.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto MStar: Potassium Channel Dysfunction in models of Neurodevelopmental Disorders” / Disfunção do Canal de Potássio em Modelos de Desordens do Neurodesenvolvimento, liderado por Ana Luísa Carvalho, do CNC-UC, foi um do 25 selecionados (6 em Portugal) – entre 602 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2020 do Concurso Health Research. A investigadora recebeu 782 mil euros por três anos. O Health Research apoia projetos de investigação em saúde e as candidaturas para a edição de 2021 encerraram a 3 de dezembro último. Em meados deste ano deverão estar disponíveis as informações sobre as candidaturas para 2022.

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