visao.sapo.ptssantos - 24 jan. 19:44

Visão | A abstenção continua em grande. E a culpa não é do bicho

Visão | A abstenção continua em grande. E a culpa não é do bicho

O elevado nível de abstenção marcou as eleições presidenciais e a culpa não é (só) da pandemia. O cada vez maior afastamento dos cidadãos do ato de votar é um problema que vem sendo ignorado pelos políticos. Urge revolucionar a forma como se coloca a cruzinha no dia das eleições

À hora que acabo de escrever estas linhas encerraram as mesas de voto em Portugal Continental e Madeira das eleições presidenciais. Ainda antes do apuramento final dos votos, há já um vencedor: a abstenção.

Estive ao longo do dia numa mesa eleitoral, um exercício de cidadania que pratico há mais de duas décadas. O cenário de hoje foi uma vez mais, mesmo antecipando-se uma fraca votação, desolador.

A comparação com o ato eleitoral anterior não é bom barómetro da abstenção. Porque, com ligeiras flutuações devidas a circunstancialismos diversos, a percentagem de abstencionistas vem sistematicamente aumentando ao longo dos anos, atingindo níveis que são verdadeiramente alarmantes.

A realidade é que este domingo uma parte muito significativa dos portugueses optou por não votar. Para muitos a desculpa é do bicho!

Ou seja, o contexto pandémico em que vivemos terá sido a principal razão para que os eleitores se tenham mantido longe das urnas eleitorais. É a posição mais cómoda e, sobretudo, aquela que dá menos chatices.

Mas os que optam por esta via de ignorar o elefante na sala estão na realidade a ignorar um grave problema. Porque com tão pouco índice de participação eleitoral, a nossa democracia está verdadeiramente a perder força a cada ato eleitoral e esse é, entre outros problemas, um dos terrenos férteis para os populistas que espreitam ao virar da esquina para a ascensão ao poder.

Os políticos eleitos pelo voto, que são os principais atores no funcionamento da nossa democracia, estão cada vez mais e mais enfraquecidos. Vejamos, não perdem legitimidade para o exercício dos seus mandatos.

Mas perdem claramente representatividade e esse é, precisamente, um dos motivos que levam os cidadãos a identificarem-se cada vez menos com a política. Como pode alguém, no caso concreto desta eleição, aspirar a ser o presidente de todos os portugueses, quando são quase tantos os eleitores que não votam quantos aqueles que decidem fazê-lo?

Como baixar a abstenção?

Um dos motivos que leva as pessoas a optar por não ir votar está relacionado com o “incómodo” que representa terem de se deslocar especificamente à sua mesa de voto. Tal poderá parecer um argumento fútil, mas os tempos são outros comparativamente com os primeiros atos eleitorais pós-25 de abril de 1974.

Nessa altura os cidadãos ansiavam poder votar e dar o seu contributo para a construção da democracia, estando por isso dispostos a vários sacrifícios para concretizar esse maravilhoso mundo novo. A realidade de hoje é bem diferente e já não existe esse sentimento de urgência.

A atual metodologia de votação implica também que muitos tenham de ficar “presos” ao seu domicílio, ou perto dele, no dia das eleições. Em plena época da mobilidade, em que parte cada vez mais significativa dos eleitores já pertence aos chamados millennials, é um autêntico contrassenso.

Após tantos atos eleitorais em democracia, já passámos por um pouco de tudo: se está bom tempo a abstenção sobe porque os eleitores foram para a praia. Se está mau tempo muitos não estão para enfrentar as filas para votar à chuva e ao frio… mais parece que a democracia está dependente do boletim meteorológico do dia das eleições.

Urge por isso facilitar o voto. Tal pode ser feito de várias formas, mais ou menos arrojadas, mas todas elas possíveis de concretizar, assim exista vontade para tal.

A começar por aumentar consideravelmente os locais onde se pode votar e também por permitir aos eleitores que votem num qualquer local que seja da sua conveniência e não necessariamente na freguesia onde está recenseado. Tal seria perfeitamente viável mesmo nas eleições autárquicas, em que num único momento se elegem vários órgãos locais, pois o voto do eleitor ficaria afeto à contabilização geral do concelho e freguesia a que pertença.

Depois, a experiência destas eleições presidenciais, em permitir a recolha de votos dos cidadãos de mobilidade reduzida, sobretudo nos lares (embora possa ser alargada de forma mais efetiva a outro tipo de instituições), poderá e deverá voltar a ser repetida. Ou seja, as mesas de votos iriam ao encontro dos eleitores mais fragilizados e não o contrário.

Nestas propostas estamos a falar da manutenção da atual metodologia de voto presencial. Sendo que nas mesas de voto urge também modernizar, nomeadamente através da utilização de ferramentas eletrónicas para votação, o que facilitaria também a forma e rapidez com que os votos são contabilizados no final do ato eleitoral.

Os partidos políticos parecem avessos a metodologias de voto eletrónicas, pois temem que tal facilite a fraude. Mas essas objeções são incompreensíveis se tivermos em conta que muitos desses mesmos partidos usam já os meios eletrónicos nas suas votações internas, não constando que sejam formas de votas menos seguras…

O exercício do voto parou no tempo e está amarrado a metodologias do antigamente. Poder-se-ia ir significativamente mais longe, sem prejudicar a segurança e a fiabilidade do ato eleitoral.

Hoje conseguimos fazer praticamente tudo o que necessitamos no nosso dia-a-dia através de um smartphone. Abrimos contas bancárias, transferimos dinheiro, fazemos compras e pagamentos, atestamos a nossa identidade perante as instituições, solicitamos documentos.

O exercício de voto poderia até ser possível numa simples máquina multibanco. Ou seja, não seria forçoso que o eleitor tivesse de se deslocar a uma mesa de voto física para votar, podendo fazê-lo onde muito bem entendesse, desde que com acesso à internet.

Claro que se levanta aqui um desafio: garantir que a pessoa que está a votar é mesmo o eleitor que deveria estar a fazê-lo. Mas também aqui, a tecnologia oferece hoje garantias de segurança fiáveis para a identificação da identidade dos utilizadores, como confirmação de multifatorial.

E seria também possível a coexistência das duas formas de votação: presencial e on-line, cabendo ao eleitoral a decisão de qual delas utilizaria.

Revolucionar a forma como se vota é possível. Implicaria investimento por parte do Estado, mudança de mentalidade e todo um processo de ganho de confiança por parte dos cidadãos.

Quanto aos políticos, é tempo de passarem das palavras aos atos. Aumentar a participação dos cidadãos na nossa democracia tem de deixar de ser um chavão dos programas eleitorais. Sejamos claros: os portugueses interessam-se pouco pela vida política e tendem a achar que a sua participação nesse domínio se resume ao voto. Acabem-se então com as entropias a essa (parca) participação e a nossa democracia ganhará muito com isso.

Soluções para aumentar a votação não faltam. Claro que não resolvem um outro sério problema que enfrentamos, que é a cada vez maior falta de identificação das pessoas com a política e os políticos… mas isso é tema para outra conversa.

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