sol.sapo.ptsol.sapo.pt - 23 nov. 18:01

Cabo Delgado. À beira do desastre

Cabo Delgado. À beira do desastre

Até Mueda, ‘lugar mítico’, base do comando moçambicano, está ameaçada. Meio milhão já fugiram das suas casas.

Ninguém imaginaria há uns meses atrás, mas os insurgentes de Cabo Delgado, que juraram lealdade ao Estado Islâmico, estão a subir os montes do planalto maconde. Saem das terras baixas da costa, maioritariamente muçulmanas, para atacar posições nos arredores de Mueda, centro de operações das tropas moçambicanas no norte da província. Até nesta vila-quartel, perto de onde nasceu o próprio Presidente Filipe Nyusi, a população foge em busca de segurança, juntando-se ao meio milhão de deslocados pelo conflito que inundam cidades mais a sul. Se Mueda cai, a debandada será ainda maior. 

«Seria um fracasso brutal, uma catástrofe», avisa Milissão Nuvunga, diretor executivo do Centro de Estudos de Democracia e Desenvolvimento, ao SOL. «É um dos maiores quartéis que enfrentam os insurgentes. Um ataque a Mueda, fracassado ou não, significaria que já passaram por todas as posições secundárias das Forças de Defesa e Segurança».

Não é só a importância estratégica de Mueda – atravessada por algumas das mais importantes estradas da região - que está em causa, mas sobretudo o seu valor simbólico. «Mueda é um lugar mítico», salienta o historiador Yussuf Adam, professor na Universidade Eduardo Mondlane. 

«Como dizia um grande geógrafo francês, a geografia serve antes de tudo para fazer a guerra», refere, citando Yves Lacoste. «O planalto maconde tinha condições excecionais para uma guerrilha funcionar. Durante a guerra entre os portugueses e a Frelimo, os portugueses ficavam na parte alta, em Mueda, e a Frelimo ocupava as áreas baixas e os lugares entre o planalto central».

Aliás, foi nesse planalto que se disparou o primeiro tiro da guerra da independência, enquanto os macondes, uma etnia cristã até então marginalizada, enchiam as fileiras da Frelimo. Desde então foram escalando hierarquias, acumulando poder.

«Parte importante das elites militares deste país vem justamente do planalto maconde, vem de lá uma porção influente da elite da própria Frelimo», acrescenta Salvador Forquilha, diretor do Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE). A queda de Mueda «significaria um embaraço político muito, mas muito grande», considera. «E o receio de que outras localidades venham a cair também nas mãos dos insurgentes iria crescer significativamente».

Mesmo sem essa derrota, o movimento de populações já é brutal. Boa parte da população do norte da província «refugiou-se no campo de Metuge e em Pemba, que está a abarrotar de gente», alerta Forquilha. «Chegaram às províncias de Nampula, Niassa, Zambézia. Fala-se até de pessoas a chegar a Sofala», bem mais a sul, a mais de mil quilómetros de distância, ou seja, umas 13 horas de viagem de carro.

A catástrofe que aguarda quem foge

Mesmo em Pemba, capital de Cabo Delgado, a partir de onde Forquilha falou ao SOL, há cada vez mais receio. «O medo paira no ar, as pessoas estão a ver praticamente todos os dias gente a chegar das áreas afetadas pelo conflito», admite o investigador, entre cortes na chamada, devido a constantes quebras na rede.

«As condições de acolhimento não aguentam tanta procura. Numa sessão de trabalho que fizemos agora, estivemos com famílias que de um dia para o outro passaram a ter mais de 60 pessoas no seu agregado familiar, são mais bocas para alimentar. E não nos podemos esquecer que no meio desses refugiados estão as crianças, que vão ficar um tempo sem ir à escola».

«É verdade que as coisas continuam a funcionar, as instituições atuam de forma relativamente normal. Mas quem frequentou Pemba e chega aqui hoje vê claramente a diferença», lamenta. «Há sempre receio, a gente não sabe o que pode acontecer. Mas as pessoas têm de levar a vida para a frente. Não há opção aqui»

Um eldorado deserto

Face a tantas atrocidades, desde decapitações e tortura por insurgentes até relatos de extrema brutalidade de militares, o eldorado que é Cabo Delgado, com enormes reservas petrolíferas, de grafite, ouro e pedras preciosas, está cada vez mais deserto. Durante anos foi palco de protestos das populações, que viam as suas terras expropriadas, as suas machambas - ou quintas de subsistência - queimadas para dar lugar a grandes perfurações.

«O certo é que no fim desta guerra já não haverá conflitos de terras naquela zona. Estão a esvaziar largas áreas, paradisíacas. As pessoas estão a abandonar tudo. Não sei como hão de voltar para lá, não têm meios», refere Nuvunga, para quem este fenómeno é uma das grandes incógnitas do conflito. «A guerrilha sobrevive à custa das pessoas. Se esvaziam as terras, não têm o que comer. Aqui há uma agenda dos insurgentes que não é muito clara».

Forquilha concorda. «Sabemos que nos locais onde eles chegam, as populações, em geral, fogem. Eles até mandam sair, dão uma espécie de pré-aviso: ‘Abandonem o local, no dia x ou y, que nós chegamos lá’».

«Não estamos ainda numa fase de conquista e administração de território da maneira que aconteceu na Síria, Iraque ou outros locais», assegura. «O que não quer dizer que não haja um certo controlo do território, porque em zonas como Mocimboa da Praia, em muitas aldeias de Macomia ou Quissanga, efetivamente, o Estado retirou-se fisicamente desses locais».

Relatos de insurgentes brancos

Mas, afinal, porque parece o Estado moçambicano tão incapaz de conter esta insurgência, que ignorou quando surgiu, em 2017, qualificando-a como mero banditismo, e só recentemente começou a levar a sério?

«Importa compreender que as forças de defesa e segurança não são uma ilha dentro do Estado moçambicano», avalia Forquilha. «Todos os problemas que afetam as nossas instituições, a corrupção, as dificuldades de funcionamento, também afetam as forças de defesa e segurança. Num contexto de guerra como este, é difícil esperar muito mais».

«Agora, o que falta? Praticamente tudo, diria. Falta capacidade militar, isso é evidente, falta motivação aos próprios elementos a combater no terreno, só isso é um grande desafio. E falta uma capacidade muito mais sofisticada de produção de informação, de serviços de inteligência e contrainteligência para alimentar as operações militares».

Os relatos que vêm do terreno são de soldados com pouca formação, boa parte deles vindos do distante sul do país, abandonados no meio do mato, muitas vezes com falta de munições ou apoio aéreo. Combatem receosos de que os seus camaradas estejam a vender informação ao inimigo, constantemente emboscados por insurgentes, que conhecem muito melhor o território e desaparecem no meio das populações em fuga.

Aliás, as autoridades continuam ainda sem sequer conseguir retomar Mocimboa da Praia, uma localidade portuária-chave, nas mãos dos insurgentes desde agosto. «No último ataque a Mocimboa da Praia, as armas saíram de dentro de casas. Houve colaboração local, eles conseguiram montar uma rede muito forte de informação e apoio logístico. Talvez por isso sejam tão eficientes».

Essa eficácia só aumentou com a chegada do Estado Islâmico, com o número de insurgentes vindos do estrangeiro a aumentar. «Os relatos vindos do terreno falam de brancos. O mais provável é que venham do Médio Oriente», assegura o investigador. «Começou a haver ataques de grande envergadura, com impacto muito maior, contra aglomerados populacionais maiores, já não são ataques a pequenas aldeias como era dantes. O impacto económico é significativo, porque o acesso e comunicação com a parte norte de Cabo Delgado está praticamente cortado, naquelas vias habituais onde se seguia para o norte já não se anda».

«Mais que um conflito religioso, é um conflito ideológico», considera Nuvunga. «E conflitos ideológicos dessa envergadura dificilmente se resolvem, não podem chegar a eclodir, esse é que é o problema. Quando eclodirem, é muito difícil. Eu não vejo como parar essas dinâmicas. Não devia ter chegado a esse ponto, deveríamos ter evitado correr atrás do gás, ouvido os problemas de desenvolvimento levantados na altura. E nós ignorámos isso».

E agora, o que se faz? «Então, fazemos a contrainsurgência», responde, com um riso que soa a desespero. Talvez porque, como se sempre se viu, das guerras de libertação na Argélia, Vietname ou nas antigas colónias portuguesas até ao conflito na Somália, Afeganistão e Iraque, este tipo de conflitos são longos, sangrentos e sempre sem uma resolução fácil.

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