visao.sapo.ptsvicente - 27 out. 09:14

Visão | Esta semi-recta fez-me dói-dói

Visão | Esta semi-recta fez-me dói-dói

Não sei bem que tipo de privilégio se imagina ter para reclamar o direito de não ser ofendido, mas deve ser óptimo

Que haja quem continue a ofender-se por causa de um desenho ou de uma palavra não é surpreendente. As pessoas ofendem-se com maior ou menor facilidade a propósito de qualquer – e sublinho qualquer – assunto. Que elas continuem a reivindicar que têm o direito de não ser ofendidas por causa de um desenho ou uma palavra – isso já espanta um pouco mais. . Desde que me levantei, esta manhã, já contei sete coisas que me ofenderam (uma no trânsito, quatro na televisão e duas numa livraria), mas falta-me descaramento para exigir que aquilo que me ofende seja suprimido. E, no entanto, o mundo seria bem melhor se todos gozássemos do direito de não ser ofendidos. Sobretudo, seria um mundo muito mais calmo. Nós não ouviríamos certas coisas dos outros, os outros não ouviriam certas coisas de nós, e muito rapidamente ficaríamos todos calados, a desfrutar do silêncio eterno.

Cinco anos depois do atentado à redacção do Charlie Hebdo, há quem continue a morrer por causa dos desenhos. Primeiro, os autores dos desenhos foram castigados com uma rajada de metralhadora. Um mês depois, em Copenhaga, outras pessoas foram abatidas a tiro num evento de homenagem aos autores dos desenhos. Agora, um professor que propôs discutir os desenhos foi decapitado. É uma espécie de homeopatia de fanatismo, mas não tem perdido força. Desenhar, homenagear quem desenha e falar sobre os desenhos são delitos punidos com a mesma pena. Basicamente, há três grandes posições sobre os bonecos. Há quem defenda que não devem ser desenhados nem publicados, porque ofendem. É o caso dos senhores que, com o auxílio de armas automáticas e motosserras, exprimem essa mesma opinião fuzilando e decapitando. Mas é também o caso de quem, não matando, sempre admite que os cartunistas se estavam a pôr a jeito, com os seus lápis provocadores. A distância que vai dos primeiros aos segundos é a mesma que vai de um violador à pessoa que não deixa de reconhecer que a violada, uma vez que vestia mini-saia, estava a pedi-las. A segunda posição é a dos que dizem que os desenhos são legítimos desde que sejam bons e tenham piada. Como a piada e a qualidade artística são matéria de opinião, este grupo falha ao não propor a necessária constituição imediata de um comité de sábios que avalie a qualidade e a graça de todos os desenhos, para que eles sejam submetidos a uma avaliação prévia de decência e bom gosto, antes da publicação. E até para garantir que o cartunista não pintou por fora dos riscos, o que também causa melindre. Finalmente, há o grupo de quem acha que as pessoas devem desenhar o que quiserem sobre o tema que quiserem, e quem ficar ofendido deve poder responder com a máxima violência, através de outros desenhos, com tintas mesmo carregadas. Pelos vistos esta é a posição mais insensata dado que quem pensa assim é, normalmente, quem fica sem cabeça.

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