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O diabo do cinema português

O diabo do cinema português

Os signatários do manifesto contra a entrada de Belzebu nas florestas virgens do Cinema Português são os mesmos que beneficiam há décadas do apoio dos contribuintes e da dízima sobre as receitas publicitárias de TV - Opinião , Sábado.
O cinema português (CP) é como um filme escrito por Nabokov e dirigido por Ed Wood. Enquanto escrevo, decorre na especialidade a discussão sobre a proposta de lei, baseada na directiva comunitária de 2018, que regulamentará um novo modelo de financiamento do sector. Caso seja aprovada, a lei multiplicará as fontes desse financiamento, transferindo a decisão sobre uma fatia suplementar de verbas para as produtoras independentes que as aplicam e para as plataformas de conteúdos em streaming (Netflix, HBO) que ficam obrigadas a investi-las, mantendo-se a presente natureza e volume do apoio financeiro público nas mãos do Instituto do Cinema e Audiovisual (através do perene sistema de concursos) e reforçando-se as verbas destinadas a este organismo (ao forçar a cobrança de publicidade de serviços de partilha de vídeo como o YouTube). O bom senso ditaria um (cauteloso) veredicto: excelente notícia. Mas trata-se do CP. Logo, é o horror.

Metade das forças vivas do CP, zelosos vigilantes do pH ético das imagens em movimento, entende que a lei em votação será "a morte do cinema português". Um dos seus mais imaculados representantes, Pedro Costa, rezou dois terços à agência EFE – trata-se de um asceta com voto de pobreza internacionalmente reconhecido –, jurando defronte um crucifixo com o rosto de Jean-Marie Straub que a tal Netflix trabalha no mercado português em jeito de "operação de crime organizado".

A linguagem, digna de Patton orando Bernardo de Claraval, é tudo menos inocente: ou se mantém o modelo sino-soviético de apoio às artes cinematográficas, taxando-se capitalistas do Império do Mal tipo HBO (para o qual trabalham néscios e corruptos como Luca Guadagnino ou Ridley Scott) em benefício de mais júris do ICA e de todos os cantos de Os Lusíadas – excepto o 9º – filmados por João Botelho e benzidos por Margarida Gil, ou eclodirá o Armagedão (ainda à imprensa espanhola, Costa balbuciou, estremecendo em latim e noutras línguas estranhas, que "é possível que seja o próprio diabo a dirigir os nossos passos").

Os signatários do manifesto contra a entrada de Belzebu nas florestas virgens do CP – muitos deles criativos de inegável talento – são os mesmos que, ungidos pela justiça divina do seu destino autoatribuído, beneficiam há décadas do apoio dos contribuintes (taxas nos bilhetes, impostos na factura da electricidade) e da dízima sobre os diamantes de sangue da maior conspiração judaica contemporânea, as receitas publicitárias de TV – é daí que vem o capital financiador do ICA e da sua espartana política de gosto. Posto isto, a futura lei carecerá de uma regulamentação clara e protetora dos agentes nacionais, públicos e privados, envolvidos. Como diria o profeta Pedro Costa, o diabo está nos detalhes.

Declaração de interesses: o autor desta crónica não podia ter mais interesse no dossier acima descrito.

Santos e... 
O primeiro visionamento aconselhável da semana é The Trial of the Chicago 7, escrito e realizado por Aaron Sorkin (A Rede Social) e disponível nesse pentagrama satânico que é a Netflix (ver texto abaixo). Sem estar isento de maniqueísmos – a culpa dos confrontos entre manifestantes contra a guerra do Vietname e a polícia de Chicago, durante o congresso de 1968 do Partido Democrata, foi repartida –, é retrato de episódio sombrio na luta pela justiça num tribunal quase tão viciado como o hipocampo de Trump.

...pecadores 
O segundo visionamento aconselhável da semana é Capital no Século XXI, documentário disponível numa das últimas capelas profanas que é possível frequentar – a sala de cinema (ver crítica no GPS). Sem estar isento de algum patchwork pop para atrair espectadores distraídos, é súmula eficaz de um dos raros livros de macroeconomia obrigatórios no último par de décadas, o ensaio homónimo do francês Thomas Piketty sobre os mecanismos da desigualdade – foi agora lançado novo volume, Capital e Ideologia.
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