observador.ptObservador - 27 out. 00:04

As empresas sociais resistem melhor às crises

As empresas sociais resistem melhor às crises

Não estou a querer dizer que as empresas “não sociais” não resistem às crises. Também não estou a querer dizer que sou contra o lucro. Mas acredito qu...

O conceito de empresa social foi criado por Muhammad Yunus. Yunus recebeu o prémio Nobel da Paz em 2006 pela criação e implementação do conceito de microcrédito em 1976, no Bangladesh.

A grande diferença entre a tradicional organização sem fins lucrativos (nonprofit) e a empresa social é que, enquanto a primeira procura apenas o impacto social sem ter, tipicamente, uma preocupação de sustentabilidade, a segunda procura um modelo de negócio que lhe permita ser uma organização economicamente sustentável, ao mesmo tempo que é uma organização geradora de impacto social.

Para além deste conceito de empresa social, que pode assumir diferenças significativas em diversas partes do mundo ou em diversos quadrantes da nossa sociedade, têm surgido uma série de movimentos complementares à empresa social. Antes de entrar na reflexão do título, gostaria de referir dois exemplos recentes. Por um lado, um movimento criado pelo Papa Francisco, The Economy of Francesco, que junta mais de dois mil jovens até aos 35 anos, provenientes de todo o mundo, com diversos perfis como economistas, investigadores, empresários e empreendedores. Este movimento tem como objetivo “dar uma nova alma à economia global”. Por outro lado, o movimento das B Corps, que nasceu nos Estados Unidos e está hoje presente em mais de 70 países. A B Corp é uma certificação para as chamadas empresas B (de benefício): empresas que criam benefício económico, benefício social e benefício ambiental. A tríade perfeita das organizações, muito difícil de alcançar, mas que uma vez alcançada é geradora de um impacto, resiliência e resistência difíceis de pôr em causa. O que distingue uma B Corp das restantes organizações é este equilíbrio entre Purpose & Profit (propósito e lucro) e estarem legalmente obrigadas a considerar o impacto de todas as suas decisões em todos os seus stakeholders (nos trabalhadores, clientes, fornecedores, comunidade envolvente e no ambiente). Existem já mais de 3500 empresas com esta certificação e no nosso país são 12 as empresas certificadas.

Um dos grandes estudos de caso das B Corps é a empresa Patagonia, uma empresa de roupas americana, que muitos provavelmente conhecem. Foi, talvez, a primeira empresa do mundo que começou a utilizar apenas algodão orgânico e poliéster reciclado nos seus processos de produção, e investe, desde 1985, 1% do total das suas vendas (não dos lucros) para reflorestação e para melhorar o nosso planeta. A Patagonia é também contra o consumo desnecessário, uma vez que todos os casacos produzidos são feitos com uma qualidade tal, que se espera que durem uma vida. Tanto assim é, que a empresa tem uma garantia vitalícia nos seus produtos. Mas dou ainda mais um exemplo real do quanto esta empresa luta contra o consumismo desnecessário, mostrando que é sempre coerente com os seus valores. Em 2016, a Patagonia doou 100% das vendas da Black Friday, cerca de 10 milhões de dólares, já depois de várias tentativas para que as pessoas não comprassem nesse dia. Este tipo de atitude e de campanhas mostram bem a coerência e o extremo a que uma marca pode chegar para não fugir dos seus valores. A Patagonia foi avaliada em 2018 em mil milhões de dólares, o que mostra que é possível ser uma marca de referência a nível mundial no que toca a negócios e, ao mesmo tempo, focada no impacto que quer gerar. Se quiserem saber mais, aconselho vivamente a ler este artigo da TIME.

Voltando ao título, depois desta longa introdução, gostava de deixar claro que quando argumento que as empresas sociais resistem melhor às crises, não estou a querer dizer que as empresas “não sociais” não resistem às crises. Também não estou a querer dizer que sou contra o lucro, antes pelo contrário. Acredito que o lucro é necessário para criar incentivo ao risco, para atrair investidores, financiadores, empresários e empreendedores e para criar valor e progresso na nossa sociedade. Mas acredito que a motivação não pode ser só essa.

As razões que encontro para o título são várias, mas queria apresentar aqui as duas que, na minha opinião, são mais evidentes para nos ajudar a ver a relação que existe entre resistir a crises económicas e a empresa ser focada em impacto:

1) A força de trabalho do futuro quer trabalhar com propósito

Um estudo da Harvard Business Review concluiu que as pessoas estão dispostas a ganhar menos para trabalharem com mais propósito. Isto pode parecer apenas romântico ou utópico, mas posso garantir-vos que tenho tido a sorte de experienciar isto no meu dia-a-dia, com pessoas que conheço e que poderiam estar a ganhar três ou quatro vezes mais.

2) O cliente é quem suporta as empresas

Um outro estudo da Forrester Research sobre os consumidores americanos, conclui que sete em cada 10 millennials (e 52% de todos os adultos americanos que fazem compras online) têm em conta, no seu processo de decisão de compra, os valores da empresa (não me refiro aos valores escritos nas paredes das entradas das sedes, mas os valores vividos em toda a cadeia de valor, tal como a Patagonia demonstra).

Assim, se quem produz valor nas nossas empresas quer trabalhar com propósito, e se os clientes são cada vez mais conscientes da sua pegada (ambiental e social), querendo comprar a quem também tem em conta estes valores, então as empresas sociais, B Corps, negócios de impacto, etc., são mais resilientes em momentos de crise, pois têm consigo os trabalhadores e os clientes.

Se a empresa no seu todo não tem este foco, terá mais dificuldade em atrair talento para produzir valor e também maior dificuldade em vender. Logo, poderá ser mais difícil sobreviver. Os números já revelam este comportamento, como podemos ler neste artigo da Forbes, que refere que “na última crise económica, as B Corps certificadas tinham mais 63% de probabilidade de sobreviver à crise do que outros negócios e empresas de tamanho similar”.

Em Portugal, começamos a ter bons exemplos de empresas que são cada vez mais sociais e de impacto, bem como associações que, sendo originalmente focadas apenas no impacto social, começam a ter modelos de negócio sociais incorporados nos seus modelos de ação.

Para terminar, é nestas últimas que me gostaria de focar, deixando alguns exemplos para que possam explorar:

Reshape Ceramics: Da associação APAC Portugal, produz cerâmica com a comunidade prisional para promover a sua empregabilidade.

Semear: Dá formação e emprega pessoas com deficiência na sua mercearia e na produção de cabazes biológicos que entregam em casa.

Gelados Fratellini: Da associação Vale de Acór, produz e vende gelados artesanais.

Just a Change: Reabilita casas de pessoas carenciadas em situação de grande pobreza, vendendo os seus serviços às empresas e municípios.

SPOT Games: Desenvolve jogos com os programas escolares para aumentar o nível de compromisso dos alunos no processo de aprendizagem.

Duarte Fonseca nasceu na cidade do Porto, onde se formou em Terapia Ocupacional, e trabalhou durante um ano numa prisão. Trabalhou durante quatro anos na Beta-i como consultor de inovação e durante três anos na Associação Just a Change. É atualmente Diretor Executivo da APAC Portugal, uma associação que cofundou em 2015 e que tem como missão disseminar e implementar novas abordagens que transformem a vida de todos os reclusos, e que promove o negócio social Reshape Ceramics. Entrou para os Global Shapers em 2019.

O Observador associa-se ao Global ShapersLisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial, para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa.  O artigo representa a opinião pessoal do autor, enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.

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