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Economia “gig”, capitalismo “low cost” e geração “slasher”

Economia “gig”, capitalismo “low cost” e geração “slasher”

Estaremos num futuro não muito longínquo, devido à quebra estrutural do emprego de qualidade, condenados a uma sociedade de regimes laborais muito diversos, uma sociedade onde o individuo se produz a si próprio.
A placa giratória dos trabalhadores precários

Trabalho temporário, trabalho precário, trabalho intermitente, trabalho independente, trabalho a tempo parcial, trabalho em outsourcing, trabalho uberizado, tudo precário, tudo transitório, tudo passageiro, tudo fluido, esta é a via sacra dos chamados gig workers ou trabalhadores precários e pluriactivos, a geração slasher do grande universo do capitalismo low cost. Vejamos alguns aspetos desta realidade socio-laboral no contexto europeu atual, no momento em que passamos gradualmente do emprego da era industrial para o trabalho da era digital, ou, mais apropriadamente, do capitalismo das sociedades industriais e terciárias para o capitalismo das sociedades pós-industriais da era tecnológica e digital.

Estamos em 2020, em plena pandemia, e com quatro grandes transições no horizonte: a transição climática e energética, a transição demográfica, a transição digital e a transição do modelo social europeu, em resultado de alterações profundas nos fluxos migratórios, na estrutura dos mercados de trabalho e nos modelos de segurança social. Estas alterações profundas ocorrem simultaneamente e não nos deixam ver claro a luz trémula do horizonte. Além disso, deixam que se forme uma contradição manifesta entre a afirmação de que somos uma “generosa comunidade de direitos sociais fundamentais”, de um lado, e o realismo cruel do empobrecimento crescente das classes médias motivado por encerramentos, deslocalizações e transformações empresariais cada vez mais intensas e frequentes, de outro. Esta divergência crescente não pode deixar de causar danos profundos sobre as convicções pessoais em redor da ideia e do projeto europeus.

O paradoxo da integração do fator trabalho

No contexto destas grandes transições, vejamos, mais de perto, alguns planos analíticos com interesse para a questão socio-laboral no quadro europeu:

  • No plano da integração económica ocorre o que poderíamos designar de “paradoxo da integração do fator trabalho”: quanto mais avança o processo de integração económica na Europa, maior é a sobrecarga de esforço de ajustamento que recai sobre o fator trabalho e todas as políticas públicas que giram à sua volta;
  • No plano do relacionamento entre as ordens jurídicas, nacional e europeia, podemos afirmar que há um “paralelismo adequado” entre as competências sociais da União e as competências dos Estados membros; isto é, as competências nucleares em matéria de política laboral e social estão sediadas nos Estados membros, cabendo à União Europeia regular e regulamentar aqueles aspetos que mais contendem com o funcionamento do mercado único, por exemplo, aqueles que permitem a prática de “dumping” social ou prejudicam a melhoria das condições de vida e de trabalho;
  • No plano do espaço de liberdade, segurança e justiça, a questão social corre o risco de ser “contextualizada ou funcionalizada” pela via securitária e/ou migratória; percebe-se, mais uma vez, como “a conjuntura securitária”, à semelhança da conjuntura económica, na ausência de um direito social consolidado, pode provocar danos gravosos na “questão social”;
  • Finalmente, no plano de uma nova cidadania europeia, a pandemia da covid-19 serve de detonador das “quatro grandes transições” antes referidas, pois elas podem estar na origem de desigualdades sociais muito mais gravosas; está em causa uma nova doutrina dos direitos sociais fundamentais, mas, também, um outro modelo social europeu e uma política social proativa que saiba conciliar, em tempo real, segurança e saúde pública, flexibilidade e empregabilidade nos mercados de trabalho.

O paradoxo da integração do fator trabalho, antes referido, ilustra bem a razão pela qual as instituições europeias são, elas próprias, reticentes a uma regulamentação social feita no quadro europeu com receio de que este espaço económico seja vítima de “um excesso de espaço social europeu”, isto é, que a diversidade social afunile no espaço social europeu, pondo em causa a competitividade europeia face à concorrência exterior.

Eis, em toda a sua crueza, o paroxismo a funcionar: quanto mais progride a integração económica mais constrangimentos se criam à volta do fator trabalho, quando, justamente, a teoria económica nos tinha, aparentemente, convencido de que a liberdade de circulação do fator trabalho conduziria, a prazo, à igualização da remuneração respetiva. De que nos queixamos, se a teoria não nos disse quando ocorreria tal igualização!

O modelo social europeu em questão

Estamos em 2020, em plena pandemia da covid-19. Perante uma das maiores crises da nossa história, receio bem que regressem as velhas asserções da economia ortodoxa que converte a política social em instrumento de ajustamento da política macroeconómica conjuntural. Para já, essa questão parece ter sido adiada. As medidas tomadas pelas instituições europeias são keynesianas quanto baste: a suspensão das regras do pacto de estabilidade, o plano de recuperação, a criação de dívida europeia, o plano de compras de ativos do BCE. Essa é, também, a razão pela qual as opções europeias de política social, na atual conjuntura, são muito sensíveis, já que uma bitola social elevada pode lesar, no curto prazo, as pequenas e médias empresas mais frágeis e uma bitola mínima pode fazer estagnar a própria política social e a economia no seu conjunto.

Nesta fase da política europeia as dúvidas são, porém, imensas. A todo o momento, a liberalização das trocas internacionais tornará insustentável muitas das situações socio-empresariais internas atuais. É de esperar, nessa altura, que o problema social intracomunitário volte à agenda europeia, seja sob a forma de “pilar social europeu” ou de “formação de um espaço social europeu”. Perante este paradoxo da integração do fator trabalho e tantas dúvidas sobre a bondade da relação contida no binómio desregulação nacional versus regulação europeia, percebe-se, agora, melhor o “território suspeito” em que se move a política social do próximo futuro.

A investida do capitalismo low cost

Estamos em 2020, em plena pandemia da-covid 19 e perante uma grave crise sanitária, social e económica. Nos últimos 20 anos, enquanto a questão social vai e vem sem uma solução satisfatória à vista entre os planos nacional e europeu, o capitalismo low cost aproveita e tira partido da vantagem da “destruição criativa”. Estamos a assistir a uma longa transição das sociedades pós-industriais para as sociedades do conhecimento e nessa transição o capitalismo low cost é, “apenas”, um aproveitamento perverso de uma deriva temporária desse capitalismo da sociedade do conhecimento que, pela sua própria natureza, não pode tolerar por muito tempo tais efeitos perversos. Vejamos o que está em causa nos mercados de trabalho na transição para esta sociedade do conhecimento da era digital:

  • Do emprego industrial de massa para um trabalho mais qualificado e personalizado,
  • Do contrato coletivo e sindicalizado para o contrato individual ou independente,
  • Do emprego rígido para o trabalho de horário flexível (bancos de horas),
  • Do emprego in situ para o teletrabalho ex situ sem limite aparente,
  • Do emprego para a vida para a empregabilidade e aprendizagem ao longo da vida,
  • Do emprego de rotina e repetitivo para o trabalho colaborativo e partilhado,
  • Do emprego fixo mal remunerado ao trabalho e remuneração por objetivos,
  • Do emprego em regime de insourcing para o trabalho em regime de outsourcing,
  • Do emprego com direitos ao trabalho intermediado por agências de trabalho temporário,
  • Do emprego com regulação própria para o trabalho em regime de prestação de serviços.

Como se vê, os sinais são muito contraditórios. Dado o espectro largo deste capitalismo do conhecimento, o problema é, em primeira instância, maioritariamente europeu e, neste contexto, a União Europeia está, claramente, necessitada de uma nova doutrina de política económica e social de que o chamado “pilar social europeu” é, por agora, uma imagem de marca muito distorcida e falaciosa. Todavia, a situação não seria tão grave se não tivesse sido pulverizada, em tempo recorde, pelo capitalismo low cost, na sua versão mais intensiva e perversa. Nos últimos 20 anos, a “destruição criativa e a inovação disruptiva” operadas pelas grandes plataformas de alojamento, de transporte, de reserva turística, de meios de pagamento, criou bolhas gigantescas nos setores tecnológico, digital, turístico, reabilitação e alojamento, transporte aéreo, comércio, serviços e restauração onde proliferam os gig workers e a geração slasher. Aqui chegados, e perante esta aceleração, ficamos com a sensação amarga de que a covid-19 veio “repor a ordem”, lá onde as instituições políticas e sociais tinham falhado e pecado por defeito.

A aventura europeia está, por isso, numa encruzilhada, pelo menos na sua atual configuração. A pergunta que se impõe é muito simples na sua formulação: está a União Europeia em condições de regular a uberização social do mercado de trabalho, de modo a prevenir e moderar os efeitos negativos que uma associação perversa entre capitalismo low cost e uberização low cost pode provocar nas relações sociais de trabalho?

Não obstante a covid-19 e a crise económica e social associada, receio bem que estejamos ainda longe de reunir as condições políticas para uma abordagem integrada deste problema e que, até lá, a convergência entre capitalismo low cost, uberização dos serviços e democracia populista irá prosseguir, criando, à sua passagem, muitos efeitos negativos, em especial, a pauperização e a proletarização de muitas franjas da população.

Notas Finais

Estamos numa situação deveras paradoxal. Uma crise profunda nos planos sanitário, económico e social a reclamar uma intervenção esclarecida de todas as instituições do Estado de direito democrático e social, nos planos nacional e europeu. Por outro lado, e em plena era das redes digitais e comunidades online, nada mais paradoxal e contraproducente do que a superioridade política e institucional da ordem burocrática da União Europeia, tudo o que as “redes sociais distribuídas” não gostam. E o que pensam as gerações mais jovens, as gerações slashers feitas de múltiplas experiências, filhas da nação-internet e da revolução digital? Elas nunca suportarão a megalomania e a omnipresença das instituições europeias, pela simples razão de que elas apostam na “desintermediação institucional e burocrática” da ordem estabelecida. Ora, este é o princípio, mesmo, da chamada uberização da sociedade de que o capitalismo low cost tira partido como ninguém e que, em conjunto, formam as bases da chamada gig economy, a economia do trabalho e dos rendimentos precários.

Como facilmente se comprova, estaremos num futuro não muito longínquo, devido à quebra estrutural do emprego de qualidade, condenados a uma sociedade de regimes laborais muito diversos, uns em part-time, outros em regime de freelance, outros ainda em regime colaborativo, sob muitos formatos, condições e reputações, se quisermos, uma sociedade onde o individuo se produz a si próprio. É preciso advertir, em especial, os nativos digitais mais distraídos para esta sedução virtual e para a ilusão do auto empreendedorismo acessível que é passada através de uma presumida relação pós-salarial.

Estamos hoje rodeados de plataformas e aplicações por todos os lados, enquanto se aguarda que o mercado único digital europeu tome conta da ocorrência e ponha alguma ordem na economia e no mundo do trabalho que oscilam, cada vez mais, ao sabor da economia das plataformas digitais e rumo a uma proto informalidade crescente.

E se, no final, o capitalismo low cost, apoiado pela uberização dos serviços e um regime de governo mais autoritário, vier sugerir a criação de um rendimento mínimo garantido “RMG” para todos aqueles que vivem abaixo de um determinado limiar de existência, sob o pretexto de que esse mecanismo de reparação social reduz bastante os custos de operação e manutenção do regime de prestações sociais do Estado social (ele próprio objeto de uberização por via das plataformas sociais), essa proposta não irá acrescer a legitimidade política do capitalismo low cost e do regime de governo que o suporta? Cuidado, pois, com a linha vermelha para onde convergem o capitalismo low cost e a uberização dos serviços, a sua bifurcação democrática é sempre possível.

Economia gig, capitalismo low cost, geração slasher, precários pluriactivos, tudo é possível. E, já agora, o alerta, também, para a região do Algarve, pois é real o risco de captura pelo capitalismo low cost, sobretudo se a inércia do sistema de política regional conduzir à convergência entre turistificação, ludificação, gentrificação, uberização dos serviços e pauperização das classes trabalhadoras. Não seria nada bonito!

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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