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Visão | O papel do setor privado em tempos de pandemia

Visão | O papel do setor privado em tempos de pandemia

Entre a proposta precipitada e pouco racional dos que apelam já à intervenção do privado e a diabolização deste setor, há um grande espaço de cooperação, serena, eficiente e transparente entre o Estado e os privados

À medida que os números da COVID sobem, crescem também os apelos à intervenção do setor privado no auxílio à pressão que iremos ter sobre os hospitais públicos. Isso mesmo aconteceu na primeira vaga, felizmente sem necessidade, e tivemos na última semana novos desenvolvimentos, quando os riscos de rutura no SNS se avolumam.

Primeiro foi a Ordem dos Médicos, respaldada pelo apoio de cinco ex-bastonários, a solicitar em carta aberta à Ministra da Saúde que se enviassem doentes para o setor privado. Depois, respondeu a própria ministra dizendo que cada coisa a seu tempo, que ainda tínhamos capacidade disponível e que não gostava de ser empurrada. Finalmente, veio uma das candidatas à presidência da república opinar que o Estado deveria fazer a requisição civil dos hospitais privados, para a prestação “pro bono” (parece que depois terá corrigido a sua posição) no caso de a procura no SNS ultrapassar as suas capacidades de resposta.

A Ordem dos Médicos tem sido lesta a apontar a solução do recurso aos privados, como sucedeu na primeira vaga, e mal andaria o governo se embarcasse, na altura, nesse desafio.

Os recursos públicos foram (e percebia-se que eram) suficientes e tudo correu bem à exceção de um confuso entendimento de alguns responsáveis de hospitais privados que, após reuniões com o ministério da saúde, admitiram que os cidadãos poderiam, naquele período, dirigir-se às unidades privadas, gratuitamente, sendo a fatura paga pelo SNS. Vigoraria assim o princípio da liberdade de escolha, tão caro a muitas correntes de opinião e tão caro também para o erário publico. Neste cenário, veríamos hospitais públicos semivazios e os setores privado e social a laborar para o SNS. Este cobriria os custos da sua ineficiência interna e, ainda, os custos dos doentes tratados no setor privado, em seu nome. Os profissionais do setor privado receberiam, nos seus honorários, os adicionais de incentivos correspondentes, situação pouco ética para os que, simultaneamente, trabalham no SNS. Felizmente, o ministério da saúde travou esse propósito.

Percebe-se, por isso, muito bem porque é que a Ministra diz agora que não gosta de ser empurrada. Há uma mimetização de interesses entre o setor público e os setores privado e social que tem, nesta matéria, primordial importância, e a ideia implícita de “salvação nacional” não pode justificar tudo. Ficamos, assim, a perceber que no momento próprio o setor privado dará o seu contributo em apoio ao SNS, mas que não devemos saltar etapas. Importa, a propósito, referir que já deveria estar negociado com o setor privado um modelo de cooperação para uso de camas de internamento geral e de cuidados intensivos, para o caso de a pandemia provocar a rutura dos serviços públicos em termos globais, situação que parece aproximar-se a passos largos. Os preços, as condições de prestação, os tempos de internamento e os critérios de utilização de cuidados intensivos deveriam estar bem definidos, para se evitar um consumo excessivo de recursos e manter ativo um compromisso sério entre custos e benefícios para os doentes.

Não posso, por isto, estar de acordo com a proposta tremendista da candidata à presidência da república, pois não tem qualquer sentido fazer uma requisição civil da oferta privada e muito menos a sua prestação “pro bono”. Outra coisa será, como parece ter depois corrigido, que os privados não deverão estabelecer preços superiores aos custos tidos pelo setor público, matéria sobre a qual teríamos (teremos), provavelmente, a agradável surpresa de apresentarem preços até mais baixos que os custos do SNS, como acontece com as PPP e está largamente documentado por todas as entidades oficiais.

Em síntese, entre a proposta precipitada e pouco racional dos que apelam já à intervenção do privado e a diabolização deste setor, há um grande espaço de cooperação, serena, eficiente e transparente entre o Estado e os privados. Este setor evoluiu muito em competências e qualidade nos últimos 20 anos e tem sido a válvula de escape que a classe média utiliza para, através dos subsistemas, ter acesso mais rápido e, por vezes, com mais conforto e personalização, aos cuidados de saúde. Só por embotamento ideológico se poderá ter a atitude de rejeição e de desconfiança a que ainda muitos setores políticos se dedicam.

Porque há ainda uma outra faceta da pandemia que agora já conhecemos melhor. O número de doentes que deixaram de ter consultas, intervenções cirúrgicas, internamentos, tratamentos e meios de diagnóstico foi brutal, principalmente nos meses de abril e maio. Essas pessoas e os novos doentes que entretanto se perfilaram, necessitam de uma resposta e até agora não se vislumbra um plano de revitalização da atividade que lhe dê corpo. Pelo contrário, o recrudescimento da COVID e do trabalho hospitalar, já está a provocar novos cortes no atendimento de doentes não-COVID, o que vai acumular o número de casos sem cuidados adequados e a tempo.

Esta será uma outra frente de diálogo e cooperação entre o setor público e o setor privado e social, para a qual há já modelos de resposta, designadamente na área cirúrgica com os vales-cirurgia. Importa aprimorar este modelo, alargá-lo a outras linhas de atividade como as consultas ou a dos internamentos em especialidades médicas ou introduzir acordos para a cirurgia ambulatória, até agora, julgo que, inexistentes.

Este é o tempo de mais ação e menos retórica, de mais consensos e de menos polémicas, de mais pragmatismo e de menos ideologia. Esperamos que governo e oposição saibam cumprir o seu papel histórico nesta crise da nossa vida coletiva. Todos ficaremos a ganhar.

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