expresso.ptCarmo Afonso - 26 out. 08:39

Hey babe, take a walk on the wild side

Hey babe, take a walk on the wild side

Opinião de Carmo Afonso

Há aquela pergunta que os miúdos fazem insistentemente em qualquer viagem de carro que demore mais de uma ou duas horas. Começa quando acordam e percebem que, como acontecia quando adormeceram, ainda estão a andar de carro mas que deverão estar muito mais perto do destino. A pergunta é: “Ainda falta muito?”. Nos filmes estrangeiros aparecia como “Are we there yet?”

Quero começar por responder. Sim, já chegámos lá.

Bem-vindos ao futuro que é também o presente. Tudo aquilo que viram ou ouviram, que estudaram, passou-se antes.

Nunca se tinha chegado tão longe. Hoje é o dia mais conclusivo. Todas as invenções, guerras, pazes, mortes, nascimentos, invasões, fugas, lutas, livros fizeram-se, travaram-se, escreveram-se, de forma a que o dia de hoje pudesse decorrer tal qual está a decorrer. Este dia deverá ser aproveitado como se fosse o último até porque é seguro que, seguindo esta filosofia, um dia acertaremos e, desse modo, não será um fim desprevenido. Mais justo assim.

Há boas notícias: amanhã haverá uma nova oportunidade para quem não conseguir tratar o dia de hoje com a dignidade que ele merece. Mas amanhã, sabem bem, “é sempre longe demais”.

Continuemos no dia de hoje, no agora, como aliás é recomendado pelas filosofias de consolo. Dessas não consigo falar muito mas lembro-me do filme “Clube dos Poetas Mortos”. Não sei bem da qualidade do filme. Vi-o quando era adolescente e uma vez foi suficiente. Foi forte, ficou feito. O filme relata a história de um professor de literatura,”Keating” (Robin Williams), num colégio interno rígido e destinado a preparar elites. “Keating” é um agitador de inteligências e de espíritos e, em vez daquela preparação, é isso que faz pelos seus alunos, carregando-lhes no gatilho que os leva experiências transformadoras e, claro, a um deles para uma tragédia. Há o risco de uma tragédia quando se tocam profundamente as pessoas. O professor acaba por ser expulso do colégio e, nessa despedida, os alunos sobem para cima das secretárias em desobediência ao colégio e mostrando a mesma coragem que os levou a rasgarem uma página do livro daquela disciplina, a marcarem encontros numa gruta à noite para ler poesia e a mesma coragem que levou “Neil Perry” (Robert Sean Leonard) ao suicídio.

Da revolução, começada por “Keating”, fica a consciência radical de que o momento em que estavam era o mais importante de todos e que deveriam “Aproveitar o dia” como pareciam querer dizer cada uma das figuras, já mortas, para que apontava numa fotografia de antigos alunos.

Não vou dizer a expressão em latim que usavam no filme porque me irrita. Cada qual tem as suas coisas.

É absolutamente certo que vamos morrer mas nenhum de nós acredita de facto nisso. A ideia da não existência é sobrenatural, tanto como �� a ideia de uma vida depois desta. Depois de alguns milhões de anos de vida neste planeta encontrámo-nos neste último bocado, um privilégio do caraças, e deparamo-nos com um cenário surreal. Estou a falar da pandemia, da nossa adesão às tecnologias e do alternar entre a vida real e a virtual, da aproximação a desconhecidos, nessa vida virtual, e do progressivo afastamento da realidade física e dos que estão nela; da autossuficiência se dispusermos dos telemóveis carregados e com as aplicações do costume operacionais; da situação de pobreza iminente de milhões de pessoas e da fragilidade dos que já estavam abaixo do limiar da pobreza; da perda de liberdade de que conseguimos apercebermo-nos e da outra mais subtil; da centralização exponencial do capital em muito poucos. São exemplos avulsos mas bate-se tudo e sai realidade em castelo.

Existem aqui dois caminhos possíveis.

O de entrarmos neste bocado de realidade que nos está a ser mostrado e de nos embrenharmos analítica e apaixonadamente nele, nas suas injustiças e armadilhas, e com propostas de soluções – é um belo exercício para o cérebro. Há sempre um certo cinismo nisto. O cérebro é tramado. Conforme o treino e as características naturais de cada um assim pode levar o seu portador a conclusões mais ou menos brilhantes mas, cérebros com excepcionais qualidades são um perigo porque podem dedicar a defender um ponto de vista, que sabem estar errado, o esforço que deveriam empregar a encontrar o melhor ponto de vista. Fazem-no com tanto êxito como os que chegaram de facto ao melhor ponto de vista. Felizmente, do que vivi, as pessoas verdadeiramente inteligentes são também bondosas. Quase de certeza. Adiante.

É um bom caminho. Foi o seguido pelos grandes pensadores, aqueles que estruturam o pensamento de quem os leu e que deixaram que outros estruturassem o seu. Walter Benjamin foi certamente uma dessas pessoas. A sua interpretação do marxismo e a forma como essa interpretação defendeu a actualidade, numa lógica que ainda é válida, de uma análise feita ao modo de produção capitalista quando esse modo de produção estava nos primórdios, terá sido uma das muitas razões para a perpetuação da visão de Marx. O seu reconhecimento de que a aplicação descontrolada de valores como a genialidade e a criatividade poderia levar ao fascismo devia estar em mesas de cabeceira por esse mundo fora. “A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica” é um texto que devia ser lido. Destaco um parágrafo: “Mesmo na reprodução mais perfeita falta uma coisa: o aqui e agora da obra de arte – a sua existência única no lugar onde se encontra.”. São bons pontos de partida para a análise que pode ser feita ao exacto momento em que vivemos. Hoje não.

Há um segundo caminho, uma outra maneira de encarar esta realidade surreal. Adianto que é neste segundo caminho que vejo o nível superior de inteligência: o de conseguir olhar para tudo o que se passa, até para o sofrimento próprio e para a autodestruição colectiva, em modo contemplativo, como quem está a ser conduzido por uma viagem que vai ter um fim e em que deve equalizar a sua participação. Decidir quando lutar e quando aceitar e nunca se perder no processo de escolha.

Não sei se algum dos leitores já esteve num estado de alteração digno desse nome. Um estado de alteração é aquele que nos consegue transportar para um ponto em que nos contemplamos de fora e que vemos os outros também de uma maneira diferente daquela a que estamos habituados e a própria realidade e os seus problemas com uma dimensão talvez mais adequada. Bom, certamente diferente.

Os estados de alteração são talvez o que de mais intenso pode acontecer a um cérebro e, outro talvez, a melhor forma de o conhecer. A lucidez que se pode atingir numa bebedeira ou numa experiência psicadélica traz um conhecimento muito difícil de obter de outra forma. A deslocação dos nossos focos de atenção ou a inevitável relativização dos problemas são uma lição de vida essencial.

Agora perguntamos: Isto é aquilo que parece? Um hino a comportamentos censuráveis e censurados?

Também.

“And the colored girls say
Do, do-do, do-do, do-do-do
Do, do-do, do-do, do-do-do
Do, do-do, do-do, do-do-do
Do, do-do, do-do, do-do-do
Do, do-do, do-do, do-do-do
Do, do-do, do-do, do-do-do
Do, do-do, do-do, do-do-do
Do, do-do, do-do, do-do-do
Do, do-do, do-do, do-do-do
Do, do-do, do-do, do-do-do
Do, do-do, do-do, do-do-do
Do, do-do, do-do, do-do-do”

Há quem consiga fazer o exercício do estado de alteração sem recorrer a nada mais do que à sua inteligência. São as pessoas com capacidade para se rirem de si mesmas, para dizerem uma piada no pior dos cenários e na pior das situações e para perdoarem os outros. Perdoar só está ao alcance de mentes muito superiores ou, lá está, ao alcance de uma grande bebedeira. Compreendam que quero usar exemplos decorrentes de substâncias leves. O mesmo para a coragem de dizer ou escrever coisas que podem não agradar a ninguém. Quem, num estado de alteração, mantém tal objectivo? Mas também existe quem nunca o faça no seu dia a dia. Abria-se aqui outro artigo para a armadilha que, também nisto, existe nas redes sociais: escrever para ter retorno em forma de corações. Fica para outro dia. E não é para espancar nem para ser espancado. Ser humano é acumular fraquezas.

Voltemos ao Walter Benjamim. Dedicou-se também à vivência de experiências psicadélicas, ao seu culto e ao seu relato. Sorte a nossa. Conto-vos dois excertos: “Devido ao corte frequente entre cada lembrança e a precedente, o nexo entre as coisas torna-se difícil de estabelecer, o pensamento não ganha forma de palavra, a situação pode tornar-se tão irresistivelmente hilariante que o consumidor de haxixe durante minutos não consegue fazer mais nada a não ser rir.” e “Somos surpreendidos e assaltados por tudo o que acontece, também por aquilo que dizemos e fazemos. O riso, tudo o que dizemos, atingem-nos como acontecimentos vindos de fora. Chegamos a experiências próximas da inspiração, da iluminação.”

Este fim-de-semana li o Expresso quase todo e atingiu-me, como acontecimento vindo de fora, que o jornal e o país precisavam de desfocar um bocado. É higiénico. Estamos todos infectados pela infecção da contagem dos infectados e por outras contagens. Zero negacionismo aqui. É trepar às árvores em vez de trepar paredes. A visita ao sítio da contemplação não passa disso. A realidade espera, se espera, e pode ser revista com mais clareza depois do regresso. Não acredito na utilidade do cumprimento do serviço militar obrigatório mas acredito profundamente na utilidade de uma experiência de desprendimento e de relativização e acredito na falta de preparação para o que quer que seja de quem nunca a viveu. Até para tirar uma fotografia é preciso procurar um plano.

E por fim: é preciso escrever cada artigo como se fosse o último porque é absolutamente certo que um será.

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