www.publico.ptmjlopes@publico.pt - 25 out. 07:29

A pandemia engoliu-nos, engoliu tudo

A pandemia engoliu-nos, engoliu tudo

A novidade é, infelizmente, todos os dias a mesma, mas isto que vivemos continua a ser uma novidade todos os dias, pelo menos para mim. Tudo em suspenso e tudo tão acelerado.

Tac tac tac. Era um sábado à noite, cerca das duas da manhã, e, em ruas em pleno centro de Lisboa, só se ouviam os nossos passos, os meus e os da outra pessoa com quem estava. Tac tac tac. O eco dos nossos passos passeio fora. Foi a primeira vez, desde que a pandemia nos engoliu, que saí à rua àquela hora.

Não passavam pessoas, ou passavam poucas, não havia táxis, ou passavam poucos, não havia gritos de quem bebeu demais, não ouvi nenhum, não havia grupos a vadiar. Naquele sábado à noite não vi um sábado à noite, vi carros estacionados, ruas muito vazias, ouvi os meus passos e os dela, tac tac tac, passeio fora. Tac tac tac, a ampliar o silêncio do início da madrugada. Pareciam seis da manhã. Não sei se é sempre assim: naquela noite, naquelas ruas por onde passei, foi. Saio pouco àquela hora, seja fim-de-semana ou outra altura qualquer. E, na verdade, acho que eram os sapatos da pessoa com quem eu estava, e não os meus, que se ouviam na rua. Tac tac tac.

Os parques infantis vedados com grandes fitas adesivas. Máscaras abandonadas nas ruas. O meu bairro em silêncio, numa noite de bom tempo, ainda não chovia nessa altura, a minha rua, que é também uma parte da minha família, esvaziada de vida. Sem bares, sem esplanadas barulhentas. Foram-se, pelo menos no meu caso, os súbitos encontros com estranhos, alguém que se aproxima para conversar, uma vez um senhor pediu-me para se sentar na minha mesa e fiquei a conhecer a incrível história de vida dele. No dia seguinte, googlei o nome dele e era verdade, todas as aventuras que me tinha contado fora de horas tinham acontecido mesmo. Já não meto conversa com alguém da mesa ao lado, não nos aproximamos, essa parte do que acontece por acaso no quotidiano mudou.

Medimos o espaço uns entre os outros, afastamo-nos de quem passa por nós, fico com receio de que a minha filha, que ainda não tem três anos, se aproxime estouvadamente de alguém, ela adora pessoas, dizer-lhes olá, dar-se a conhecer a quem não a conhece, medo de que reajam mal. Não vejo crescer a barriga de grávidas de quem gosto. Nos lares, as visitas são feitas com um vidro a separar uns de outros.

Contamos os mortos, em conferências de imprensa. Os recuperados, os infectados. Os números. E, curiosamente, num tempo em que a nossa vida parece meia suspensa – sem o barulho e o contacto de outros tempos, sem desvarios nem danças, com um medo de que tudo colapse, o dinheiro, o emprego, a saúde, com todos à espera do fim dito –, a voragem acentuou-se, os dados, as notícias, os estudos. A pandemia consumiu tudo. O mundo inteiro engolido. O pequeno vírus microscópico engoliu-nos.

As notícias são a pandemia, as conversas são a pandemia, os medos são a pandemia, as regras são a pandemia, as transgressões são a pandemia, e tentamos acompanhar tudo como se estivéssemos a ver, às apalpadelas no escuro. Quando a vou levar à creche de manhã, paro num dos restaurantes da minha rua para dizer bom dia ao dono. Já não falamos sobre trivialidades, já não falamos sobre nada, já não falamos sobre as nossas vidas à escala das coisas pequenas, falamos sobre o vírus, sobre as máscaras na rua, sobre os surtos, sobre o restaurante também ele engolido por isto, sobre os números.

Vou menos aos restaurantes, aos cafés, às esplanadas, vou menos ao cabeleireiro, às lojas, não vou a bares, não falo com bêbados com oráculos enigmáticos, não conheço estranhos que me intrigam, não danço, ando menos de transportes públicos, convivo muito menos com todos com quem convivia antes. Não beijo gente, não dou abraços. Deixei de caminhar lado a lado com as pessoas,

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