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Votava neste homem?

Votava neste homem?

Tenho a atenção virada para uma enormidade. Daqui a dez dias, Trump pode ganhar as eleições. Em anos comuns, podemo-nos divertir com indecisos. Desta vez, não.

Um sapateiro amigo convidou-me a ir à sua loja na Vicus Sandaliarus, em Roma, perto do Coliseu. Eu estava interessado nuns sapatos de lã, como então se usavam. O meu amigo marcou o negócio para o dia 24 de agosto do ano 410 (d.C.). Naturalmente não fui, pois seguia há meses o avanço dos visigodos. Algo me dizia o que se preparava: desde aquela manhã e durante três dias, o rei Alarico e os seus bárbaros invadiram e saquearam Roma.

Um bom bocado mais tarde, em 1932, um primo meu, judeu alemão, comprou um BMW, capô preto e portas vermelhas, grelha belíssima. Convidou-me a dar uma volta pela Floresta Negra, no outono. Recusei: “Aaron, devias ler os sinais dos tempos, devias cuidar-te…” Mas ele lá foi, sozinho, testar o seu motor de seis cilindros. Eu fiquei a acompanhar as eleições parlamentares de novembro, confirmei a nova vitória de Hitler e assustei-me de vez. No novembro de 1933 já a Alemanha, pela lei, era só hitleriana. O resto — leis e factos — seguiu o que era de esperar.

PÚBLICO - Foto Adolf Hitler

Nunca me arrependi por tentar estar atento ao que de enorme se passa no mundo. Agora, tenho a atenção reservada só para o que vai acontecer nas eleições americanas, daqui a dez dias. Não que preveja hordas de visigodos e nazis, será certamente outra coisa. Só estou a dizer que não há nada mais importante para emprestar a minha atenção. Apesar da peitaça nua do nosso Marcelo, nada mais importante do que Trump. Por aquilo que anuncia e, sobretudo, pela enormidade que já é, e por uma ainda maior, se for. Trump candidato! A sério?! Trump Presidente! Não posso crer!!! Não é por ser déjà vu que deixa de avisar.

Se Roma durante 800 anos nunca foi invadida e durante três dias é saqueada por bárbaros, se a Alemanha, que vinha de Kant e estava em Thomas Mann, entroniza (e com votos livres!) um lunático que iria asfixiar, de forma funcionária e limpa, milhões de homens, então, distrairmo-nos é uma falta. Ao menos, um pouco de perplexidade.

Com Trump, é aí que eu estou. Daqui a dez dias, ele pode ganhar as eleições.

À hora em que escrevo, as sondagens dos estados de Ohio, Florida, Carolina do Norte e Arizona dão, mais ou menos, empate. Se caem para o lado mau e se com a Pensilvânia acontece o mesmo que a Hillary Clinton – parecer ganhar ligeiramente dez dias antes e perder no fim – Trump volta à Casa Branca. Uma enormidade que vai abalar a América e o nosso destino.

É para a enormidade que a atenção se deve virar. Em anos comuns, podemo-nos divertir com os eleitores indecisos. Há estados onde os candidatos e os anúncios das televisões quase nunca lá vão — os votos são para clientes certos, por exemplo, na democrata Califórnia e no republicano Utah. E há os estados dançarinos que não se agarram a uma tradição, o voto reparte-se entre os dois grandes partidos, tão próximos que ora caem para um, ora outro. Um dos dançarinos, o Ohio, até leva a bizarria da dança e da mudança em acertar sempre no vencedor nacional – em 120 anos, trinta eleições, só se enganou duas vezes.

A volubilidade dos estados dançarinos produz uma caça aos eleitores indecisos, com os diretores de campanha a tentar encontrar a promessa e a frase certa para os fascinar. É uma ciência, como dizem os politólogos. Sim, mas quando o duelo é tão evidente como aquele que já por duas vezes travou e trava Donald Trump, 2016 e 2020, a psicologia do indeciso só pode ser explicada ressuscitando uma anedota. Foi o que fez o jornal Washington Post, esta semana. “No avião, a hospedeira pergunta pela escolha entre as duas propostas do menu: galinha ou a massa infecta com bocados de vidro partido? Um passageiro, pensa, pensa e, sempre indeciso, diz: a galinha vem acompanhada com quê?”

A imagem adequa-se a estas eleições. Joe Biden serve-se, de facto, cozido e insonso. E a alternativa do menu está bem descrita, peca é por ser sóbria. A massa infecta que é Trump vem, além dos vidrinhos cortantes, com pozinhos que podem deitar abaixo o avião. Mas, honra lhe seja feita, o candidato eleitoral repetido e já Presidente com todo um mandato, com baixeza e descuido manifestos, nunca alindou o prato.

PÚBLICO - Foto Donald Trump e Joe Biden durante o debate da semana passada Mike Segar/Reuters

Se há indecisos não é porque Donald Trump os engane: as suas mentiras são mais despidas que o oferecido peito de Marcelo. Só não o lê de ginjeira quem foi amestrado. Trump negou a pandemia da covid-19 em muitos discursos, confessou-a numa entrevista e permitiu-se uma “cura” que mais ninguém arriscaria apregoar num país onde pode faltar muita coisa, menos a inevitabilidade de uma investigação mais cedo ou mais tarde. Arriscou ele, porque quando a investigação chegar dirá que nunca disse que se curou. Como nunca disse que não mostrava a declaração de impostos que nunca mostrou.

Este narcisista cercado do seu eu por todas as suas palavras e cada um dos seus atos merecia o que The Atlantic lhe fez esta semana. A revista cultural e de intervenção política, fundada em 1863, tomou uma decisão na quinta-feira. E explicou-a.

Porque ele é um caso judicial (de indecência), o título foi: “O Caso Donald Trump”. O artigo era o endorsement da The Atlantic, pedindo o voto em Joe Biden. Em 163 anos de vida, a revista endossara a sua vontade de voto só em três ocasiões: em 1860, em 1964 e em 2016. A favor de Lincoln, para combater a escravatura; por Lyndon Johnson, porque o adversário Barry Goldwater prometeu a bomba atómica no Vietname; e em Hillary Clinton, porque contra Trump. E, agora, 2020, “por um homem decente”, contra quem não o é.

Com a sabedoria, imaginação e estilo, a revista onde Emerson, Twain e Hemingway assinaram textos começou por lembrar a pergunta do major Harold Hering, oficial da Força Aérea num esquadrão de aviões com a bomba atómica, em 1973: “Como posso saber se a ordem para lançar a bomba vem de um Presidente são?” A pergunta nunca foi respondida e o major passou à vida civil porque, disse, “eu precisava de conhecer a resposta”.

PÚBLICO - Foto Capa da última The Atlantic

Mandar carregar no botão atómico é a única prerrogativa, na república americana, de um “monarca absoluto”. O Presidente tem de ser capaz de, em minutos, “entender a ambiguidade e os sinais contraditórios de um iminente ataque nuclear inimigo”. Daí que a estratégia nacional de defesa dos Estados Unidos se baseie na assunção de que o povo americano nunca permitirá que um maluco se torne Presidente. É um pressuposto ao nível da soleira da porta, não deixar entrar na casa comum um lunático para a governar. Sobretudo se é a Casa Branca.

Eis exposto o osso da questão eleitoral americana: o pressuposto que não pode errar, está errado. Já em 2016, o candidato Donald Trump mostrou “pecados e defeitos enraizados em instabilidade mental e patológico narcisismo”. Um mandato confirmou-o. Uma segunda campanha insistiu no mesmo. Afinal, “O Caso Donald Trump” não é uma sentença, é um diagnóstico.

A América que excela em fórmulas disse, um dia, sobre um candidato presidencial: “Comprava a este homem um carro em segunda mão?” Ingénuos tempos em que tudo que se apostava era perder um carro em segunda mão. Hoje há uma enormidade.

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