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“A pandemia, um cancro mortal e a minha filha de 14 anos”: o testemunho de um fotógrafo da Reuters

“A pandemia, um cancro mortal e a minha filha de 14 anos”: o testemunho de um fotógrafo da Reuters

Rebecca foi diagnosticada com sarcoma de Ewing, uma forma rara e extremamente agressiva de cancro dos ossos. A batalha contra a doença tornou-se ainda mais difícil com o surgimento da pandemia de covid-19. Darrin Zammit Lupi, fotógrafo da Reuters, d

“Estranhamente, não consigo imaginar claramente o rosto do cirurgião que mudou a vida da minha família. Não sei se o reconheceria se o encontrasse na rua. No entanto, consigo lembrar-me vivamente do seu rosto a ficar pálido no instante em que olhou para as radiografias do ombro da minha filha de 14 anos.

A dor crónica tinha sido inicialmente diagnosticada como uma provável inflamação e depois como, possivelmente, algum problema no músculo que poderia ser corrigido com algumas sessões de fisioterapia. Mas naquele dia, 31 de Outubro de 2019, descobrimos que se tratava de sarcoma de Ewing, uma forma rara e extremamente agressiva de cancro dos ossos. O cancro tinha começado profundamente no osso esponjoso do úmero e depois irrompeu pela superfície óssea, causando dores excruciantes e depois formando metástases em várias outras partes do corpo.

Rebecca, ou Becs, como lhe chamamos, estava de repente a lutar pela vida.

PÚBLICO - Foto REUTERS/Darrin Zammit Lupi

Vivemos em Malta, uma pequena ilha no mar Mediterrâneo entre Itália e África. Os cuidados de Becs foram confiados à ala pediátrica e adolescente, denominada Ala Arco-íris, no Centro de Oncologia Sir Anthony Mamo, um anexo do principal hospital nacional da ilha, Mater Dei.

Para começar, foi-nos dito que precisaria de nove ciclos de quimioterapia, seguidos de cirurgia para substituir o osso por uma prótese no Centro Ortopédico Nuffield, em Oxford, Inglaterra.

Mas menos de seis meses depois, a batalha de Becs ficaria ainda pior devido a uma pandemia global que trouxe alguma paranóia quanto à possibilidade de uma nova infecção afectar o seu sistema imunitário já comprometido, ansiedade sobre as cadeias de fornecimento médico e, pior de tudo, separação numa altura em que união era o que mais precisávamos.

Durante os ciclos de tratamento, Becs foi hospitalizada para que pudesse ser acompanhada de perto. A minha mulher Marisa, ou Mars, ficou no hospital com ela. Eu ia visitá-la todos os dias enquanto continuava o meu trabalho como fotógrafo da Reuters.

PÚBLICO - REUTERS/Darrin Zammit Lupi PÚBLICO - REUTERS/Darrin Zammit Lupi PÚBLICO - REUTERS/Darrin Zammit Lupi PÚBLICO - REUTERS/Darrin Zammit Lupi Fotogaleria REUTERS/Darrin Zammit Lupi

Mas isso mudou a 15 de Março, com a chegada do novo coronavírus a Malta. Era domingo e eu estava a cobrir a chegada de migrantes resgatados, como tive de fazer frequentemente nestes últimos 15 anos. Marisa telefonou-me em pânico, dizendo que iam impor isolamento na ala.

A partir do dia seguinte, quem estava dentro ficaria dentro e quem estava fora ficaria fora, numa tentativa de proteger os doentes jovens e muito vulneráveis. Precisávamos de reorganizar rapidamente as nossas vidas; não fazíamos ideia de quanto tempo isto iria durar. Deixei o meu equipamento em casa e corri para o hospital para passar aquela que viria a ser, em muito tempo, a minha última noite no hospital com Becs.

“Fizemos as coisas que muitas vezes fazemos juntos – vimos vários episódios de Friends, falámos, rimos, jogámos jogos de tabuleiro e de cartas. Deixá-la naquela noite pareceu-me a coisa mais difícil que alguma vez tive de fazer. Não fazia ideia de quando a voltaria a ver pessoalmente.”

Fizemos as coisas que muitas vezes fazemos juntos – vimos vários episódios de Friends, falámos, rimos, jogámos jogos de tabuleiro e de cartas. Deixá-la naquela noite pareceu-me a coisa mais difícil que alguma vez tive de fazer. Não fazia ideia de quando a voltaria a ver pessoalmente. Naturalmente, nas semanas seguintes, Becs e eu vimo-nos diariamente no FaceTime e no Messenger, mas não era a mesma coisa.

Mesmo assim, eu sabia que era para a sua própria segurança. Com um sistema imunitário praticamente inexistente, o novo coronavírus seria fatal para ela. Estou contente por o hospital não ter corrido qualquer risco, por mais difícil que fosse para nós. A alternativa era impensável.

PÚBLICO - Foto REUTERS/Darrin Zammit Lupi

Na frente doméstica, a paranóia instalou-se. Por vezes, pareciam avassaladoras todas as medidas obsessivas de cada vez que saa, cada vez que entrava numa loja, voltava para o carro, voltavapara casa, tirava os sapatos e desinfectava as solas, desempacotava as compras, limpava tudo com desinfectante, todo o esforço que era feito para limpar e desinfectar absolutamente tudo o que entrava em casa. (Tracei o limite quando alguém sugeriu que eu deveria higienizar as patas do cão quando o trazia para casa depois dos passeios, sempre à noite para evitar encontrar outras pessoas na rua.)

Depois houve a ansiedade avassaladora – estou a fazer isto bem? Será que perdi um lugar, será que acabei de trazer o vírus para casa, será que acabei de me infectar? Será que a pandemia da ansiedade acabará por ser pior do que o próprio vírus da pandemia? Não admira que em breve estivesse exausto de todas as formas possíveis.

Mantive um diário durante este tempo horrível. Comecei-o em parte porque tinha decidido documentar a batalha da Becs, mas foi também uma tentativa de preservar alguma da minha sanidade. Além disso, não sabia quão má a covid-19 ia chegar aqui; não sabia se ia acabar com todos. Colocar as coisas num documento acessível através da Cloud a algumas pessoas seleccionadas foi também uma forma de garantir que se algo me acontecesse, a história não se perderia por completo.

31 de Março, 2020. Usei uma máscara pela primeira vez quando saí ontem. Fui a um mini-mercado para comprar alguns materiais de limpeza, os corredores eram estreitos, havia bastantes pessoas e os meus óculos estavam embaciados por causa da máscara N95 (uma amiga farmacêutica conseguiu arranjar-me três há alguns dias, ela disse que cada uma deveria durar cerca de 12 horas de utilização). Há anos que não sentia essa sensação de claustrofobia, foi uma loucura. Foi necessária muita força de vontade para não a arrancar da minha cara.

O agravamento global da situação da covid-19 significava que os planos de tratamento da Rebecca tinham de ser alterados. Os médicos decidiram continuar com a quimioterapia além dos nove ciclos originalmente previstos e incluir os ciclos a que teria sido submetida depois da cirurgia em Oxford.

PÚBLICO - Foto REUTERS/Darrin Zammit Lupi

Além da impossibilidade de viajar para Inglaterra, tivemos de lidar com as preocupações sobre a disponibilidade de material médico.

3 de Abril, 2020. Becs fez uma ressonância magnética ao ombro. Apesar de mostrar melhorias, as células cancerígenas activas permanecem. Vai fazer radioterapia, além de continuar com a quimioterapia. A Tomografia por Emissão de Positrões (PET) foi adiada porque o corante necessário não estava disponível. A cadeia de abastecimento em Itália estava a ter problemas. Entrei em contacto com pessoas que conheço dentro do sistema, eles analisaram rapidamente e, dentro de um dia, o velho amigo Kili que é radiologista disse-me que os produtos estariam de volta dentro de alguns dias. Tinha havido algum problema com o pessoal de assistência em terra em Fiumicino, em Roma, mas agora está resolvido. Enquanto escrevo isto, Becs está provavelmente prestes a ser levada para o Departamento de Imagem para o exame.

O confinamento solitário no hospital foi difícil. Durante várias semanas, Becs e Marisa estiveram essencialmente confinadas ao seu quarto. Nada de andar pela ala e parar para conversar com as enfermeiras ou de sair para o terraço para apanhar ar fresco. As salas de jogos estavam fechadas e a cozinha que tinha estado disponível para as famílias só podia ser utilizada de acordo com uma lista.

À medida que a sensação de claustrofobia se começava a instalar, as autoridades cederam em algumas medidas e começaram a permitir novamente a utilização do terraço da enfermaria, com as pessoas a irem à vez e apenas durante alguns minutos.

PÚBLICO - Foto REUTERS/Darrin Zammit Lupi

6 de Abril, 2020. Hoje vi a Becs! E a Mars. Mars conseguiu descobrir uma forma de nos vermos uns aos outros. O terraço tem vista para o parque de estacionamento dos médicos, que é bastante sossegado durante as tardes. Assim, como o tempo estava bom e Becs foi autorizada a ir ao terraço, fomos em frente.

Foi a primeira vez que nos vimos pessoalmente em mais de três semanas. Só as consegui ver através das aberturas da vedação, mas foi uma coisa e tanto. Um momento emocional para todos.

Após quase dois meses, as medidas de quarentena no hospital foram relaxadas e os pais foram autorizados a trocar de lugar, desde que tivessem testes à covid-19 negativos e mantivessem uma quarentena rigorosa enquanto estavam em casa. Acabei por fazer dois períodos no hospital de mais de três semanas cada, durante os dois meses seguintes.

“27 de Abril, 2020. Tem sido verdadeiramente espantoso estar finalmente reunido com ela. Há tantas coisas divertidas que ela quer que façamos juntos, que não vejo como podemos encaixar tudo isto. Mas nós estamos a tentar!”

27 de Abril, 2020. Tem sido verdadeiramente espantoso estar finalmente reunido com ela. Há tantas coisas divertidas que ela quer que façamos juntos, que não vejo como podemos encaixar tudo isto. Mas nós estamos a tentar!

11 de Maio, 2020. Nunca passámos tanto tempo juntos, só ela e eu. Vimos muitos episódios de Friends – na verdade, terminámos ontem a última temporada. Começámos a ver juntos quando ela adoeceu pela primeira vez e partilhámos tantas gargalhadas desde então. Ajudou-nos realmente a ultrapassar esta provação.

Por esta altura, Becs estava também a passar por um duro regime diário de radioterapia, cujos efeitos secundários não eram bonitos. Além de ter causado estragos na contagem sanguínea, as queimaduras de pele resultantes do tratamento eram extremamente dolorosas. Num esforço para a animar, as enfermeiras fizeram uma pequena festa para ela no final do seu tratamento de radioterapia. Nessa altura, ela já tinha ficado fascinada com toda a ideia da imagiologia médica e da radioterapia, tendo mesmo olhado para tal como uma possível escolha de carreira.

Becs até conseguiu encontrar algo positivo no isolamento: “Assim que começou o isolamento, tudo o que era divertimento foi-me retirado. Contudo, algo de bom aconteceu”, disse-me ela quando eu estava a escrever esta história. “A escola online foi introduzida e eu pude finalmente, após cinco meses sem estar na escola, juntar-me a algumas aulas e comunicar com os meus professores. Isto era o que eu pedia há meses, mas o meu pedido para as aulas serem transmitidas foi recusado. Quando não lhes foi dada escolha, isto mostrou como era possível, por isso comecei a lutar para que a escola online continuasse depois da covid-19 para estudantes que não podem frequentar a escola/universidade por razões médicas, para pessoas como eu. Estou tão contente que mesmo no meu ano mais difícil a minha voz foi ouvida.”

16 de Maio, 2020. Estou em casa, após três semanas de isolamento no hospital com Becs. A casa parece estranha, desconhecida. Ou talvez esteja completamente exausto física e mentalmente. As coisas podem parecer mais normais amanhã.

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Durante tudo isto, Marisa manteria os nossos amigos e família informados sobre o progresso de Becs com publicações no Facebook. Uma em particular parecia resumir bem a nossa situação, por isso incluí-a no meu diário.

26 de Maio, 2020. “Aqui, na Ala Arco-íris, não se trata apenas da nossa própria história. Trata-se de muitas famílias que partilham a sua história. Já passei aqui tempo suficiente para fazer parte dela... Hoje, estamos solidários com uma paciente muito jovem que esteve aqui connosco, mas que neste momento se encontra em Inglaterra. Ela está nos cuidados intensivos enquanto escrevo... Estamos em contacto com a sua mãe que precisa de apoio e orações neste momento. Por isso, por favor, pensem nela.”

“Mas também tem havido bons momentos: Becs fez recentemente 15 anos e ver os seus velhos amigos no seu aniversário significou tudo para ela.”

8 de Julho: A paciente sobre a qual Mars escreveu, citada acima, não sobreviveu. Ela tinha apenas um ano de idade.

Becs teve finalmente alta do hospital em meados de Julho, depois de ter completado o seu 14.º e último ciclo de quimioterapia, mais de quatro meses depois de se ter encontrado ali fechada. Continuará a ser paciente numa base regular num futuro previsível.

Isto está longe de ter terminado. Ainda estamos à espera de ver se a levarão para Oxford para a cirurgia que os médicos pensam que ela precisa. Muitos mais testes estão em preparação. Mas também tem havido bons momentos: Becs fez recentemente 15 anos e ver os seus velhos amigos no seu aniversário significou tudo para ela.

Na primeira saída de Becs após ter abandonado o hospital, levei-a à noite para o canto Noroeste da ilha, uma área relativamente escura, para que ela pudesse tentar vislumbrar o Cometa Neowise. Embora o cometa fosse difícil de ver a olho nu, Becs conseguiu vê-lo com a ajuda da minha câmara e da minha lente longa.

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E depois avistámos uma estrela cadente. Pedimos um desejo – não há prémio para adivinhar qual foi.”

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