www.publico.ptluis.santos@publico.pt - 7 ago. 23:36

Temos de olhar para as árvores e saber ver a floresta

Temos de olhar para as árvores e saber ver a floresta

Temos de voltar a calcorrear os nossos bosques e florestas, abraçar as nossas árvores, temos mesmo de viver a floresta, percebê-la na sua criação, divina e humana – há que conhecer para amar e, como diz o chavão, quem ama cuida.

Quantos de nós, entre os taciturnos dias de confinamento e estes estranhos dias de liberdade condicionada pela pandemia, não deixámos a cabeça viajar pela natureza, quem não deu por si a imaginar-se em fugas por caminhos ladeados de árvores, por túneis vegetais sem betão e gente à vista, a mergulhar numa floresta como que em sonhos? Não teremos sido poucos a desejar a fuga para as árvores, tal como, e há muitos sinais que o indicam, não somos poucos a aproveitar as férias para conquistar serras e montanhas, bosques, matas e florestas, a seguir por escapadelas para aldeias cercadas de monumentos naturais

Nesta Primavera dos nossos confinamentos, dei também por mim com a floresta a surgir-me como esse lugar mítico – não podemos esquecer que é neste cenário, entre a beleza e o horror, que se passam tantos contos e fábulas da nossa infância –, dei por mim, sentado na minha varanda urbana cuja vista é betão e quatro nespereiras (elas desaparecem conforme avança o cimento) a viajar pelo Maine, EUA, território corrido quase de ponta a ponta por floresta. Milagres da literatura. 

Foi graças a Christopher Knight que passei uns belos dias completamente sozinho a viver escondido numa clareira secreta numa floresta do Maine. Fui um eremita por uns dias, ele foi-o (mais ou menos) durante 27 anos. Quando falamos em viver a floresta, não nos podemos esquecer de Knight, a quem aliás chamam “o último verdadeiro eremita”. Este homem, aos 20 anos, em 1986, cansou-se do mundo, abandonou o carro num caminho, entrou pelo arvoredo e só voltou a ser avistado em 2013, quando foi detido – é que o nosso eremita, embora um case study de sobrevivência (o Maine varia do calorzinho ao gelo de neve e também tem direito aos seus incêndios fatais, está, aliás, a viver um ano terrível), lá por ter abandonado a civilização, percebeu, como nos acontece a todos, que já estamos tão dependentes de algumas invenções e confortos (e comidas) que precisamos deles para manter mínimos de qualidade de vida.

Como é possível viver uma “aventura” radical destas durante quase três décadas? É o que o livro The Stranger in the Woods, de Michael Finkel (2017), conta, e que foi editado em português pela Elsinore sob o título Fora do Mundo. A história, entre a reportagem e investigação e a busca literária em redor dos factos e mitos, é realmente impressionante, mas, para além da lei (não é propriamente um “herói”: ele fez muitos, mas mesmo muitos, pequenos roubos a cabanas e casas de campo quando estas não estavam a ser usadas), da literatura e da filosofia, há uma ideia que persiste ao longo das páginas e que nos pode ser útil nos tempos em que vivemos e em que tantos parecem ter redescoberto o poder e necessidade da natureza: a floresta como casa. 

Sim, para ele foi casa de uma forma que nos parece naturalmente exagerada, mas para muitos portugueses a floresta é a sua casa, a sua vida. E, para os restantes de nós, a floresta é essencial, não só como aquele cliché de pulmão dos nossos mundos, não só como matéria de indústria, de relevância económica, mas, seja por umas horas ou por alguns dias, especialmente em dias de pandemia social – simultânea a esta sempre aterradora temporada dos fogos para Portugal –, a floresta pode ser uma liberdade “fora deste mundo”, uma casa revitalizadora, protectora, até mestra, incutindo-nos repetidamente, passo a passo, a lição que deveria fazer parte de nós, de que temos de protegê-la, não só como agora sob ameaça do fogo, mas sempre – lembremo-nos de como se debate a pandemia e a biodiversidade. E, para isso, temos de vivê-la, conhecê-la.

Numa das últimas vezes que fugi de casa, há uns anitos, foi através de muita serra: palmilhei (devagarinho) muitos quilómetros de Monchique, um sobe-e-desce à descoberta de natureza avassaladora, de natureza arrasada pelo fogo, de aldeias em sangria de gente e a tentarem sobreviver às agruras, de muita gente hospitaleira a lutar pela esperança. Temos de voltar a calcorrear os nossos bosques e florestas, abraçar as nossas árvores, temos mesmo de viver a floresta e até descobri-la para lá das árvores, percebê-la na sua criação, divina e humana – há que conhecer para amar e, como diz o chavão, quem ama cuida. Até pela nossa saúde mais imediata e porque Portugal tem vindo a perder área florestal essencial.

“A linha divisória entre ele e a floresta”, leio Christopher Knight a ser citado no livro, “parecia dissolver-se”. “O seu isolamento era mais como uma comunhão.” Talvez por muito menos tempo do que o eremita, sim, mas eis uma comunhão de que, definitivamente, todos precisamos.

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