www.publico.ptantonio.rodrigues@publico.pt - 7 ago. 06:28

Todas as bibliotecas do mundo

Todas as bibliotecas do mundo

O mundo que se conta a partir do que se diz.

“Tudo treme e de repente as estantes dos livros, as bibliotecas, revelam-se sólidas, confiáveis.” Jorge Carrión, escritor espanhol

O livro é da família

Como escreve Pablo Natale no jornal argentino La Voz, Alejandro Zambra consegue, com o seu último romance, Poeta chileno, duas coisas que são armas para a literatura sobreviver ao impacto de outros meios de contar histórias: essa capacidade de nos fazer embrenhar numa história que não queremos nunca que chegue ao fim e a criação de uma tal intimidade com o leitor que se transforma em parte da família. Mesmo neste tempo de domínio digital, explica Jorge Carrión, os livros sobrevivem porque dispõem de um “tipo de ferramentas que não estão nas narrativas audiovisuais”, uma “carga de profundidade” que nos permite baixar o ritmo do mundo frenético do digital e respirar: “Demos conta que não queremos que a nossa vida seja exclusivamente digital e que necessitamos de outros tipos de comunicação, lenta, a longa distância e de longa duração, inclusivamente espiritual”. O livro amedronta pela necessidade de ficar a sós com ele, mas também recompensa quem supera os receios. A frase do “vá para fora cá dentro” devia figurar na capa de todos os livros porque não há melhor viagem. Como diz o provérbio árabe, “livros, caminhos e dias dão ao homem sabedoria”.

Vai ser subversivo para Taiwan

A nova lei de segurança nacional imposta por Pequim na Região Administrativa Especial está a pôr os editores de Hong Kong a pensar em Taiwan para editar alguns dos livros que possam ser mais subversivos. Aquele que era considerado um porto seguro para intelectuais que procuravam fugir das garras afiadas do Partido Comunista Chinês deixou de ser. Não é que antes não houvesse choques com o Governo chinês por causa deste ou daquele livro, sobretudo nos últimos anos. O South China Morning Post, o mais importante jornal do território, lembra os seis editores que desapareceram em 2015 de Hong Kong e apareceram no continente, sob custódia da polícia, a assinar confissões de arrependimento pelos seus actos. Um deles conseguiu escapar para Taiwan e denunciou publicamente que tinha sido raptado e submetido a longos interrogatórios. Mas, agora, a nova lei de segurança nacional aprovada pelo executivo chinês para o território é suficientemente vaga na definição dos crimes que deixa livreiros e autores a pensar duas vezes antes de publicar alguma coisa, com receio do que possa ser interpretado como um acto de secessão ou de conluio com forças estrangeiras. As bibliotecas também já começaram a limpar as estantes de livros que desagradem à linha oficial do partido.

Biblioteca infinita

Jorge Luis Borges escreveu que a biblioteca de Babel sobreviveria ao homem, “iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta”, com todas as combinações possíveis das letras limitadas do alfabeto e seus dois símbolos de pontuação, o ponto e a vírgula. Borges, o escritor, que foi director da Biblioteca Nacional argentina durante 18 anos, é uma obsessão de Mario Vargas Llosa que acaba de publicar em Espanha um livro, Medio Siglo con Borges, onde congrega tudo o que escreveu sobre o autor de Ficções, incluindo as duas entrevistas que lhe realizou, em 1963 e 1981. Numa resposta de 1963, Borges fala da surpresa e alegria ao saber que o seu livro A História da Eternidade tinha vendido num ano 37 exemplares. “Eu gostaria de ter agradecido pessoalmente a cada um dos 37 compradores ou apresentar-lhes as minhas desculpas”, afirma, porque “37 compradores são imagináveis, quer dizer, são 37 pessoas que têm características pessoais e biografia, domicílio, estado civil, etc.” Se tivesse vendido mil ou dois mil exemplares, explica, isso já seria “tão abstracto que é como se não tivéssemos vendido nenhum”. Todos os livros buscam um leitor na abstracção de escrever; todos os leitores buscam um amigo na acção concreta de ler.

Consequências indesejáveis

O historiador holandês Ian Buruma demitiu-se de director da New York Review of Books há cerca de dois anos. A polémica em torno da edição do número dedicado à “queda dos homens” – onde surgia o ensaio do músico canadiano Jian Ghomeshi que reflectia sobre a denúncia de uma vintena de mulheres acusando-o de assédio sexual e a sua absolvição em tribunal – acabou por levar à demissão de Buruma. Esta semana, em entrevista ao jornal chileno La Tercera, sublinha que no clima actual “as pessoas suspeitas de serem cépticas ou de dissentir ideologicamente” acabam por ser “apagadas do discurso público”. Neste tempo de reacções rápidas e, por vezes, irreflectidas, no tribunal das redes sociais, “qualquer um que expresse uma opinião que não se ajusta à nova ortodoxia sobre a justiça social torna-se vulnerável”. Mesmo que os objectivos sejam nobres, como na criação das religiões, há aqui também “certa semelhança com a forma como se faz cumprir o dogma religioso”, afirma Buruma: “Aqueles que não cumprem, são tratados como hereges.” A HBO estreou há pouco uma adaptação de O Admirável Mundo Novo. Aldous Huxley, que morreu em 1963, ano da primeira entrevista de Vargas Llosa a Jorge Luis Borges, dizia que para garantir a nossa liberdade temos de pagar o preço de estar sempre vigilantes.

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