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Filipa Lança, da Ordem dos Médicos: “em última instância também a DGS é responsável” pelas mortes no lar de Reguengos

Filipa Lança, da Ordem dos Médicos: “em última instância também a DGS é responsável” pelas mortes no lar de Reguengos

Faltaram recursos humanos, faltou uma visita “imediata” da Autoridade de Saúde Pública para ver que no lar da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva não havia condições para manter os mais de 80 utentes quando havia uma infeção a propagar-se. Faltou depois uma ordem de transferência. “Todos tinham conhecimento das poucas condições de que o lar dispunha para se fazer o tratamento clínico”, diz em entrevista ao Expresso Filipa Lança, coordenadora da comissão de inquérito da Ordem dos Médicos ao caso de Reguengos

A Ordem dos Médicos divulgou os resultados da comissão de inquérito ao caso do lar de Reguengos de Monsaraz, onde morreram 18 pessoas com covid-19. Uma das conclusões foi a de que as orientações da Direção-geral da Saúde (DGS) não foram cumpridas. Quais as informações mais importantes que encontraram?
Desde logo que houve quebra nas boas práticas clínicas e também naquilo que são as normas da Direção-geral da Saúde, nomeadamente, no controlo que devia ter sido feito à infeção. Compreendemos que havia ali problemas muito complexos, incluindo falta de recursos humanos - o lar já estava com um défice de pessoal e depois com a infeção, que atingiu utentes e funcionários, alguns ainda tiveram de ficar em casa. Portanto, houve um período muito grande em que os recursos humanos não eram de todo suficientes para assegurar os cuidados básicos dos utentes, colocando também em causa todos os cuidados clínicos.

Logo nos primeiros três dias em que se percebeu que a maioria dos utentes estava infetada e que não havia nem recursos humanos nem condições logísticas para garantir o distanciamento, deveriam ter procedido à transferência dos doentes. E isso não aconteceu porque os responsáveis foram tentando recrutar profissionais - alguns mais de saúde e outros, como voluntários, mais habituados a participar em determinadas missões. Ainda assim, também este recrutamento levou bastante tempo e não houve nunca uma coordenação com uma decisão clínica. Foi-se deixando protelar a situação por uma tentativa de, administrativamente ou politicamente, resolver o problema. Mas o problema arrastou-se e os doentes só foram transferidos duas semanas depois, quando a infeção já estava quase completamente disseminada por todos os utentes.

Dizia que faltavam recursos humanos.
Os doentes têm de estar continuamente monitorizados com equipas com um rácio muito pequeno, ou seja, poucos doentes para cada profissional. O principal problema foram aqueles dias todos em que os doentes estiveram no lar sem condições para prevenir a transmissão do vírus.

NUNO VEIGA

Quantos profissionais de saúde acompanhavam os idosos?
O primeiro teste de diagnóstico foi feito a 17 de junho a uma funcionária do lar. No dia seguinte, houve o primeiro resultado positivo. Nesse momento, estavam internados no lar 84 utentes e só havia duas enfermeiras. Ou seja, mais de 40 utentes para cada uma - o que num lar em que praticamente todos os doentes são autónomas e sem grandes patologias crónicas graves está dentro do rácio (um enfermeiro por cada 40 utentes). A 19 de junho, vieram 50 testes positivos e percebeu-se que esta era uma situação em que esse rácio era insuficiente.

Mas ainda antes da pandemia o lar já não tinha recursos humanos suficientes?
Penso que não. Quando temos doentes que estão com um grau elevado de dependência, o rácio deve ser de um enfermeiro para 20 utentes. A maioria dos utentes daquele lar têm patologias crónicas, portanto, seguramente que esse rácio de um enfermeiro para 40 não era o ideal.

Deveria ser o dobro? Quatro enfermeiros?
Exatamente. Embora não tenhamos o número certo de auxiliares, o número de enfermeiros era nitidamente inferior ao que deveria estar no lar.

Considera que houve um incumprimento consciente das normas da DGS ou que simplesmente o lar não conseguia fazer mais do que fez devido à falta de recursos?
Não me passa, de todo, pela cabeça que tenha sido um comportamento deliberado. Creio que as pessoas agiram de boa-fé e deram o máximo que conseguiam, tentando ajustar e orientar as coisas para não terem de transferir os utentes. Eu sei que é uma situação difícil, complexa e que não conseguimos encontrar recursos humanos de um momento para o outro - até porque estamos a falar de profissionais com um perfil muito específico, sobretudo numa altura de pandemia. Sem estes recursos é muito difícil que uma série de protocolos de segurança sejam assegurados, mesmo que as pessoas estejam de boa-fé e façam o seu melhor.

Com mais de 80 utentes e em que em três dias se percebe que a maioria está infectada, tinha de haver uma decisão imediata de transferência. Só a 26 de junho é que há uma reunião para delinear circuitos e separar os utentes e, nesse momento, colocaram todos os infetados num só andar. Se os doentes são muitos para pouco pessoal, alguns cuidados clínicos ficam para trás. Por isso é que a DGS estabelece que, numa situação como esta, a Autoridade de Saúde Pública tem de visitar imediatamente o local para perceber se há condições logísticas e de recursos humanos. Se não há, deve ser feita esta transferência: pode passar por contactar os familiares e alguns utentes irem para casa, transferências para outros lares ou, até, em alguns casos, para o hospital. Tem é que haver uma decisão, porque quanto mais tempo se demora, mais contacto entre as pessoas há. E, neste caso, passou pelo menos uma semana assim. A transferência para um pavilhão só foi feita entre os dias 2 e 3 de julho e, nessa altura, os doentes que apresentavam estados mais graves já estavam internados no hospital ou, infelizmente, já tinham falecido.

NUNO VEIGA/ LUSA

Parte da responsabilidade pode ser atribuída à Administração Regional de Saúde (ARS) do Alentejo?
Sim. A autoridade de Saúde está representada pela ARS do Alentejo. É ela que tem o papel de liderar e definir como se pode implementar as práticas clínicas de acordo com o delegado de saúde publica. No fundo, o delegado de saúde pública define se há ou não condições e cabe à ARS definir e tomar a decisão do que deve ser feito. Neste caso, a ARS acabou por convocar os médicos de medicina geral e familiar para irem prestar cuidados aos utentes do lar - e isto é prova que reconheciam a gravidade da situação.

No lar, numa fase inicial nem havia registos clínicos do que era feito aos doentes. E estamos a falar de doentes numa situação em que é muito mais provável a doença agravar-se e terem de ser encaminhados para o hospital. Quando chegam já vão em estado grave, o que demonstra que, provavelmente, teriam beneficiado muito de uma transferência muito mais precoce. E isso é preocupante porque o papel clínico de um médico também deve ser o de antecipar o risco para minimizar a mortalidade e morbidade dos doentes. Para o fazer, tem de ter condições e tem de as exigir.

Estas responsabilidades atribuídas à ARS, estendem-se à Direcção-geral da Saúde?
A Direção-geral da Saúde delega funções em cada região e a ARS, com um delegado de saúde, assume essas funções. Se as coisas não estão a funcionar, claro que a DGS deve intervir. Desde o primeiro dia em que os profissionais de saúde começaram a ir ao lar foram informando quer o diretor clínico quer o presidente da ARS. Todos tinham conhecimento das poucas condições de que o lar dispunha para se fazer o tratamento clínico. Portanto, das duas uma: ou passavam a informação, para as instâncias superiores, de que não tinham condições e que precisavam de ajuda ou resolviam de forma regional e foi esta segunda opção que tomaram. A meu ver, esta não foi a mais adequada.

Isto é um sim? As responsabilidades são partilhadas com a DGS?
Sim. Em última instância, a responsabilidade é sempre hierarquicamente para cima. A ARS está a cumprir funções delegadas. Se as coisas não estão a correr bem, quem está mais acima tem de perceber e agir.

NUNO VEIGA/ Lusa

Soube-se esta sexta-feira que o Ministério Público vai abrir um processo sobre este caso após as conclusões da comissão de inquérito. Podemos estar perante um crime de negligência?
Creio que negligência é muito forte. Penso que em todo este processo não houve de forma alguma má-fé. Acho é que infelizmente houve uma descoordenação completa em que estamos numa zona mais familiar em que as decisões clínicas, administrativas e políticas andaram sempre de mãos dadas. Numa situação desta gravidade, temos de ter uma voz técnica que dê ordens e isto falhou. Se me perguntar se houve negligência? Não acho. Os médicos que prestaram apoio no lar entregaram-se a esta missão de forma completamente dedicada, foram agindo da melhor forma que puderam com as condições que tinham.

A minha questão não era apenas sobre quem está na linha da frente. Falava de negligência em posições hierárquicas superiores.
No nosso entender, há algo que falha: há um surto, no mesmo dia conhecem-se 50 casos infetados na mesma casa, portanto, faz parte realizar uma visita obrigatória e imediata da autoridade de saúde pública e não houve. Uns dias mais tarde vão outros elementos, supostamente com funções delegadas pela autoridade de saúde pública, visitar o local mas só mais outros tantos dias depois é que são delineados os circuitos com a separação dos doentes. Por isso, sim, houve aqui um certo nível de negligência mas nunca de má fé.

Com a decisão de transferência de utentes e o reforço dos recursos humanos ter-se-ia evitado mortes?
Nunca podemos dizer isto com certeza. No entanto, é factual que houve doentes que faleceram por pneumonia covid e outros que faleceram por descompensações do seu estado basal, nomeadamente, com disfunção renal. Não nos podemos esquecer que estivemos num período de enorme calor e em doentes idosos, com falta de recursos humanos, das primeiras coisas que acontece é deixarem de ter alguém com tempo para lhes dar água e alimentar. Chegam ao hospital com valores das análises agravados e, seguramente, se tivessem chegado antes, teriam mais hipótese de ter um desfecho diferente. Não podemos dizer que se doente A tivesse vindo mais cedo não teria morrido. Mas aquilo que sabemos, de uma forma geral, é que, quanto mais precoce for a intervenção em doentes frágeis, maior é probabilidade de minimizar a mortalidade e morbidade.

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