www.sabado.ptleitores@sabado.cofina.pt (Sábado) - 7 ago. 11:17

Façam menos perguntas parvas

Façam menos perguntas parvas

Se queremos discutir assuntos sérios – e há muitos para discutir – temos de ir além da cretinice infantil das “guerras culturais” e da lógica tribal das claques. - Opinião , Sábado.

Na última semana metade do país pôs-se a especular sobre as razões que fizeram um homem de 76 anos assassinar outro de 39 – porque na resposta a esta única questão, na explicação deste único crime está, aparentemente, a chave de saber se Portugal é ou não um país racista. A discussão mais alargada, que devia ser independente de qualquer crime individual – brutal, violento, odioso – ficou reduzida a uns pareceres vagos sobre se Portugal é racista sempre, nunca ou só de vez em quando. Toda a gente deu palpites e neste festival não sobreviveu nenhuma discussão útil sobre desigualdades e violências transversais na sociedade portuguesa. Missão cumprida.

A motivação individual do homem que assassinou Bruno Candé conhece-a o criminoso (se é que tem discernimento sequer para isso) e há de procurar conhecê-la o tribunal que terá de o julgar, para apurar a culpa ou inocência e os fatores de agravamento ou atenuação da pena. Podemos, claro, especular – todos o fizeram – mas é um exercício inútil. Inútil para fazer sentido deste crime sem sentido e inútil para discutir o que verdadeiramente importa.

O que importa perguntar aqui não é por que razão um homem matou outro. Ou sequer se Portugal é um país racista. Essa é uma pergunta parva, para abordagens parvas. Porque neste contexto, o que significa "Portugal"? E o que significa "racismo"?

Portugal é um país racista? Legalmente não – a nossa Constituição e a lei expressamente proíbem a discriminação racial e fundam o Estado português na "dignidade da pessoa humana". Portugal é um país racista? Socialmente sim – já foi amplamente citado o inquérito do European Social Survey que revela que mais de metade dos inquiridos em Portugal considera haver grupos étnicos mais inteligentes ou trabalhadores que outros. Portugal é um país racista? Institucionalmente não sabemos. Não sabemos se as instituições públicas ou privadas têm comportamentos discriminatórios em função da etnia (por mais que esses comportamentos sejam ilegais) porque o próprio Estado se recusa a recolher informação que seria crucial para medirmos essa questão – e a recusa trai, obviamente, um enorme incómodo com a questão que é ele próprio uma pista para a resposta.

Portugal é um país racista? É uma pergunta parva. Porque não é pergunta nenhuma – é, na verdade, uma tentativa de definir a resposta, de moldar o debate. Que começa muitas vezes num mal entendido sobre o que é o racismo. O racismo não é apenas um comportamento individual de gente preconceituosa ou agressiva – essa é apenas a sua face mais visível e violenta. O racismo é também um milhão de pequenas distinções entre cidadãos, de hierarquizações sociais até inconscientes que fazem com que tratemos melhor aqueles que se parecem mais connosco e sejamos mais distantes e desconfiados com os que são "diferentes". O racismo é também um milhão de pequenas práticas que tratam as pessoas de forma diferente – em função da etnia, como também acontece em função do sexo ou da posição social ou económica – e que passam facilmente despercebidas (nem reparamos nelas) mas têm um efeito nas atitudes das pessoas e na prática das instituições. É o que os ativistas chamam racismo estrutural.

O que é claro é que este assunto merece – exige – discussão atenta e aprofundada, sem ser à boleia de casos mediáticos ou de manifestações ou contra-manifestações episódicas. Neste ponto, marchas de homens brancos a dizer que não há racismo em Portugal são tão úteis como marchas de maridos a dizer que não há violência doméstica, ou marchas de banqueiros e advogados de negócios a dizer que não há crime de colarinho branco.

A lógica de rua facilmente se transforma em mais uma forma de desconversar e de acicatar supostas "guerras culturais" artificiais que acrescentam zero a um debate informado sobre desigualdades estruturais na sociedade portuguesa, mas servem lindamente a agenda política de quem as promove – no caso, o Chega, apostado em alimentar os medos de uma classe média branca que sente que tem vindo a perder muito, em termos sociais e económicos, e que teme ainda perder mais, porque lhe dizem que para combater as desigualdades (que no íntimo todos reconhecemos existirem) vamos ter de lhes tirar ainda mais prosperidade económica ou posição social.

Mas aqui está o ponto que deve convocar-nos para o sangue frio e a empatia. Não são as minorias que nos estão a roubar rendimento, qualidade de vida, esperança no futuro – ou pelo menos não são certamente "estas" minorias, elas próprias vítimas (às vezes em dobro ou triplo) destas privações. A minoria que nos está a causar este mal é a que se alimenta do poder do Estado para desviar bens públicos para vantagens privadas. São esses que, ao mesmo tempo que nos levam a mão ao bolso, nos apontam o vizinho do lado como a causa dos nossos males e nos incentivam a gritar contra ele.

Dos peões desse jogo sujo – dos histéricos dos dois lados, ou dos oportunistas do Chega – eu quero respostas a perguntas menos parvas: quais são os problemas estruturais do país? Quem são os responsáveis? Como resolver esses problemas? Através de que mecanismos ou instituições? Esses mecanismos são democráticos? Essas instituições estão capacitadas para resolver os problemas? Ou estão capturadas por quem ganha em perpetuá-los?

Estas são as questões que merecem debate adulto. Perguntas parvas geram respostas parvas e promovem lideranças parvas. O caminho para sairmos dos sarilhos em que estamos metidos – e que no imediato só se vão agravar com a pandemia – não é suspendermos a inteligência, nem exigir menos dos nossos líderes ou de nós próprios. É sermos mais inteligentes, mais empáticos e menos medrosos. É fazermos, para começar, menos perguntas parvas.

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