ionline.sapo.ptJoão Luís Mota de Campos - 7 ago. 10:59

Viver como habitualmente em Portugal – versão a cores

Viver como habitualmente em Portugal – versão a cores

Se nada for feito para travar as gulas incontidas dos parasitas do sistema, o dinheiro vai ser transmutado em contas offshore de uns quantos privilegiados.

Há momentos na vida em que dá vontade de desistir. Passa-se meio século a tentar e, de repente, interrogamo-nos se valerá mesmo a pena, se alguém vai ligar, dar alguma importância. Para mim, é o caso da política portuguesa. Tem ou não tem remédio?

Juntamente com um grupo de cidadãos empenhados, lançámos há cerca de oito anos um manifesto para uma democracia de qualidade cujo argumento central é o de que a representação política portuguesa necessita de ser refrescada e que esse desiderato poderia ser alcançado através da introdução no sistema eleitoral de círculos uninominais – que, aliás, já estão previstos na Constituição.

Ouvimos repetidamente o mesmo argumento: é boa ideia, mas não agora. 

A única conclusão, depois de o manifesto ter sido objeto de uma petição pública à Assembleia da República e de ter sido discutido e despachado em menos de um quarto de hora, é a de que os partidos políticos que integram o sistema não estão interessados em mudar seja o que for. 

Se o país está bem assim, para quê mudar? Já nem falo na introdução de candidaturas independentes nesses círculos uninominais, porque não está previsto na Constituição e seria necessária uma alteração constitucional para o permitir. Aliás, se a alteração constitucional de 1998 que possibilitou os círculos uninominais não é posta em prática, que sentido teria propor a possibilidade de candidaturas independentes? 

Para o país, tinha todo o sentido; para o sistema político, nenhum, porque lhe poria em causa o monopólio de representação política que domina a vida em Portugal desde 1976. 

Assim, chegamos a este agosto de 2020 sem que se veja a mínima possibilidade de fazer evoluir o sistema. 
O “sistema” vive, aliás, da inércia e dá-se bem com ela. Quanto menos suceder, quanto menos alterações se fizerem, melhor para os seus protagonistas. É Salazar ressuscitado: viver como habitualmente, sem mudar nada, mantendo todos os paradigmas, insuficiências e disfunções, a fim de preservar o poder de um grupo de políticos que integram o “arco da governação”. Ganhar as eleições para governar e governar para ganhar as eleições, pode ser esse o lema do nosso regime político.

É até simbólico, neste ano em que se celebram 50 anos sobre a morte do dr. Salazar, que o regime lhe preste esta espantosa homenagem, não ao homem, mas ao sistema: não mudar nada, preservar para durar e durar para perseverar. Como programa político, é pouco, nada, mas para eles é muito, tudo.

O atual Governo vai na segunda legislatura, já passou os cinco anos de governo estável e com uma maioria funcional. No início do seu mandato procedeu a umas tantas “reversões” de medidas tomadas no Governo anterior, durante o período da troica; depois disso remeteu-se a “viver como habitualmente”, num mundo transfixado em que nem os ministros mudam e as políticas públicas primam pela ausência de objetivos nacionais. 

Podia, caso a caso, descrever a abulia deste Governo mas, por necessidade de brevidade, dou apenas três exemplos: a saúde, onde a discussão foi ao nível de manter ou não manter as parcerias público-privadas, sem que se tenha, ao cabo de cinco anos, chegado a uma conclusão. No entretanto, teceram-se mil loas ao extraordinário sistema nacional de saúde e aos seus pais fundadores, heróis nacionais postos a par dos santos, mas o sistema não parou de piorar.
Na justiça, a mesma ministra presidiu a cinco anos de completa imobilidade (deve ser porque está tudo bem…) e não foi capaz de pôr em prática, nem quis, uma única daquelas reformas pelas quais o Partido Socialista passa o tempo a berrar quando está na oposição. A coisa que a tornou mais notória foi a recente imposição do candidato perdedor num concurso internacional para a Procuradoria Europeia, em detrimento da candidata ganhadora – a melhor prática de governance de que este Governo é capaz.

Na educação, um bolchevique reciclado, aureolado com o facto de vir do “estrangeiro” (uma parolice de que não nos livramos), limitou-se a introduzir nos curricula uma cadeira de endoutrinação e de engenharia social chamada Cidadania e Desenvolvimento, cujo objetivo é o de educar os adolescentes para a evidência das causas fraturantes da extrema-esquerda. Ai dos pais que tentem furtar os seus filhos a isso… 

Na economia, entrámos no socratismo puro e duro: é o regresso dos “grandes projetos nacionais”, como o do hidrogénio, em que o sistema se propõe derreter 7 ou 8 ou 10, nem se sabe bem, mil milhões de euros do dinheiro que vem da União para ajudar a resolver a crise pós-pandémica, em projetos megalómanos que vão prejudicar o país mas beneficiar, e de que maneira, os seus promotores e patronos. 

Em relação aos detratores deste absurdo, o Governo, com a elegância que o caracteriza, descreve-os como “mentirosos do pior” e “aldrabões encartados”. 

A leal oposição de sua majestade “o sistema” limita-se a emitir uns vagidos langues e flácidos, próprios de quem é leal oposição e pretende deixar o Governo da nação trabalhar.

O país devorou, ao longo dos últimos 35 anos, os muitos milhares de milhões que chegaram da Europa, sem que com isso tenha saído da cauda do desenvolvimento da mesma, e vai conseguir a proeza de ficar em último lugar depois da entrada de uma dúzia de países do leste, ex-comunistas, cujo atraso era notório em 2004. Eles passaram-nos à frente, nós ficámos a ver. 

Com esta nova leva de ajudas excecionais, que da mesma forma vamos derreter sem honra nem glória, mas com processos-crime garantidos dentro de dez anos, para gáudio do povo e humilhação de uns quantos poderosos, vai acontecer o mesmo. 

E nós a ver, feitos pascácios, como se fossemos ao cinema ver, já nem digo um remake, digo uma repetição em formato mega de um filme velho e relho chamado “viver como habitualmente em Portugal”. A cores, já não a preto e branco…

Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça, subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”

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