www.sabado.ptleitores@sabado.cofina.pt (Sábado) - 5 ago. 17:06

Escravatura moderna

Escravatura moderna

Sem documentação, Eleazar trabalhava ilegalmente numa plantação de melancias. Levantava-se cerca das 5H00 e trabalhava mais de 11 horas por dia, com duas pequenas pausas, sob o calor intenso. Morreu no dia 1 de agosto. - Opinião , Sábado.

Eleazar Herrera, tinha 42 anos. Era natural da Nicarágua, onde viviam a mulher e os seus cinco filhos, um dos quais nasceu após a sua partida. Morreu no passado sábado na zona de Múrcia, em Espanha.

Sem documentação, trabalhava ilegalmente numa plantação de melancias. Levantava-se cerca das 5H00 e trabalhava mais de 11 horas por dia, com duas pequenas pausas, sob o calor intenso, sem ter acesso a água que não lhe era dada e que não tinha dinheiro para comprar. Com o que ganhava em cada dia tinha que suportar todas as suas despesas, ao preço que os seus "patrões" fixavam, no que se incluía o alojamento, a comida, o transporte na carrinha que o transportava para a plantação onde trabalhava e até a água que bebia. 

 No dia em que morreu estavam 44 graus. Também nesse dia não teve água. Depois de se sentir mal e de desmaiar não foi chamada uma ambulância nem feito qualquer outro pedido de ajuda. A carrinha de transporte dos trabalhadores não se encontrava no local e quando aí chegou, e a fim de não "desperdiçar" uma viagem, ficou a aguardar o final da jornada de trabalho.  

Só depois, o Eleazar foi levado e deixado abandonado à porta do Centro de Saúde de Lorca. 

Esta história passou-se em Espanha, mas podia ter sido em Portugal ou em qualquer outro país do mundo.

A escravatura foi abolida, no nosso País em 1761. Porém, actualmente, e sem termos plena consciência disso, mostra-se implementada a escravatura moderna. Os crimes de tráfico de pessoas e de escravidão, existentes no nosso ordenamento jurídico, são julgados com alguma regularidade aos Tribunais Portugueses

Escravo é todo aquele que é restringido nos seus direitos essenciais, a quem é retirada toda a dignidade inerente a todo e qualquer ser humano. Aquele que é privado da sua liberdade, que é obrigado a trabalhar através de violência ou ameaça mental ou física, que é totalmente controlado por outrem, que é desumanizado, coisificado, que é como quem diz tratado como uma coisa.

De acordo com os dados do Relatório Índice Global de Escravidão 2018, cerca de 40,3 milhões de pessoas em todo o mundo foram submetidas a práticas de escravidão, sendo que desses, 24,9 milhões respeitam a trabalho forçado. As vítimas são, em 71% dos casos, do sexo feminino e uma, em cada quatro, são crianças.

No que concerne à exploração laboral tratam-se sobretudo de actividades menos visíveis ou expostas, realizadas ou à porta fechada (como é o caso do trabalho doméstico) ou que ocorrem em zonas mais isoladas ou mais remotas ou em países pobres onde é tal é visto e encarado com normalidade – ainda que, na maioria dos casos, tal naturalidade não seja expressamente assumida.

Os tempos modernos com as suas guerras e conflitos armados, com a fome, com as inúmeras catástrofes naturais, com as alterações climatéricas, com as sucessivas crises económicas, o desemprego, tornam as pessoas, sobretudo as provenientes de países mais pobres, extremamente vulneráveis.

O desespero e a perspectiva de um qualquer futuro – para quem nada tem – são uma porta aberta para a aceitação de situações que com toda a facilidade os leva a uma situação de escravidão ou próxima dela.

Trata-se de uma realidade do pleno conhecimento dos Estados, das Instituições Europeias e Mundiais. Aliás, no dia 16/7/20, a Comissão Europeia apresentou orientações aos Estados-membros para assegurar a protecção dos trabalhadores sazonais na União Europeia, nomeadamente no contexto da pandemia e garantindo a segurança e saúde e reforçando as inspecções no terreno. E, a 24/7/20, o Conselho dos Direitos Humanos da ONU denunciou as condições de vida "deploráveis" de trabalhadores migrantes sazonais em Espanha, apelando às autoridades regionais espanholas para as melhorarem "imediatamente".

Tais recomendações não foram suficientes para evitar a morte de Eleazar Herrera.

As medidas são poucas e ineficazes.

Importa priorizar a luta contra a escravatura moderna, tão hedionda como aquela que se viveu em tempos idos. E importa consciencializar a sociedade evoluída do sec. XXI desta realidade com a qual, sem se ter tal percepção, convivemos tão proximamente. 

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