expresso.ptSofia Leal - 5 ago. 09:00

Covid-19: a “bazuca financeira” que não nos rebente nas mãos

Covid-19: a “bazuca financeira” que não nos rebente nas mãos

Opinião de Sofia Leal

No início da pandemia, em março, perguntavam-me: “Tens medo?”. Tinha a convicção que não poderíamos ter. Havia a emergência do desconhecido. Mas identificada a necessidade de ter que assistir os nossos doentes sem descurar os nossos profissionais, não podíamos ter medo. Temos que proteger os nossos profissionais e temos que garantir que tudo esteja operacional para cuidar dos nossos doentes. Tínhamos de estar preparados, presentes e juntos. Só assim iríamos conseguir superar o que se aproximava. Temos que estar aqui e vamos conseguir, todos juntos e todos os dias.

Teria de haver audácia para reinventar novas formas de resposta assistencial e de aprovisionamento dos recursos. A adaptabilidade e redesenho dos modelos assistenciais, reorganização das equipas e das funções de cada um.

Foi muito importante não perdermos a noção do sistema. Estávamos conscientes da nossa responsabilidade juntamente com as autarquias, dos Cuidados de Saúde Primários e do sector social, para que sempre que emergia um foco externo às paredes do hospital pudéssemos ser parte integrante na resposta. Atuar a montante seria a melhor estratégia para não colapsar o sistema.

O planeamento e o compromisso estão obviamente por detrás do sucesso de uma organização. O sucesso de uma organização encontra-se, numa primeira instância, no adequado planeamento. Contudo, nas organizações de saúde a presunção simplista de que um plano se vai cumprir verticalmente sem o envolvimento de quem o tem de executar no terreno, estará condenado ao fracasso.

Foi por isso que se tornou necessário convergir planeamento e contexto de catástrofe numa organização burocrático-profissional. Cada fase do plano foi ativamente participada pelos responsáveis diretos pelos processos internos. Primeiro escuta-se o que cada um sabe. Depois o que cada um sugere para a fase seguinte. Consensualiza-se. Passa-se a escrito e divulga-se por toda a comunidade hospitalar.

Diariamente os planos de ação eram revisitados, os processos melhorados, stocks e equipamentos reforçados. Proatividade era a palavra de ordem.

Na realidade, as respostas estão nos profissionais que lidam diretamente com os problemas.

A regra de ouro foi a escuta permanente, com validação coletiva e formalização da implementação. Esta metodologia alimenta o compromisso de todos os intervenientes, desde a conceção à execução e avaliação estratégica.

Solidariedade! Olhando para dentro de cada um de nós fazemos a pergunta: o que tenho de melhor para poder ajudar?

Este exercício individual refletiu-se na disponibilidade imediata dos profissionais. Cada um tinha consciência de que era uma célula fundamental no sucesso da resposta coletiva.

De forma inesperada, sobretudo, quando começávamos a vivenciar os constrangimentos do mercado externo, perigando a nossa capacidade de resposta, a sociedade juntou-se ao combate.

Desde o pintor que chegando à nossa porta no Serviço de Urgência carregando um pequeno caixote de mascaras e luvas e, com lágrimas nos olhos, disse: “é tudo o que tenho mas quero ajudar-vos”; as instituições que nos emprestaram equipamentos médicos; empresas que reafetaram os seus recursos a processos geradores de produtos necessários; e aos grandes grupos de empresas que se uniram para aquisição e doação.

Cada individuo, cada organização, cada empresa, todos estiveram ao nosso lado. Todos, sem exceção foram vitais no sucesso da resposta do hospital.

A sociedade percebeu que estávamos sofridos e, como que num toque de Midas, com doações de géneros alimentares, cremes e flores acarinharam os profissionais. É difícil passar a palavras o impacto humano destas ações. Os profissionais perceberam que estavam a ser cuidados pela sociedade, que eram reconhecidos e valorizados.

Ninguém procurava ser herói, todos quiseram preservar a vida. A sua, a dos doentes, numa luta desigual. Por isso, o impacto motivacional da sociedade, daquilo que cada um fez nestes meses, foi significativamente marcante e determinante na resiliência.

Agradeceram-nos pelo nosso trabalho, mas nós é que estamos profundamente gratos por nunca nos terem deixado sós.

A translação da aprendizagem é o que mais nos distingue - seres humanos - em termos de inteligência coletiva.

Encontramo-nos perante uma prova de que a nossa capacidade de transferência das aprendizagens realizadas e de sermos efetivos na aplicabilidade das mesmas é tremenda.

Audácia; Planeamento e Compromisso; e Solidariedade munem-nos de saberes que não poderemos ignorar face ao potencial de (re)investimento no nosso país e nos nossos sistemas. Colocam-se-nos desafios ímpares que aqui ficam, para reflexão:

Teremos a audácia de implementar sistemas robustos de integração entre os setores da saúde e o social?

Teremos a solidariedade efetiva para promover uma política única do bem-estar?

Seremos capazes de implementar medidas realistas de investimento no capital humano do SNS que promovam o reconhecimento e compromisso dos profissionais de saúde?

Seremos capazes de flexibilizar a gestão das organizações de saúde?

Seremos capazes de implementar políticas que promovam o desenvolvimento das nossas empresas por forma a diminuir a dependência do mercado externo?

Seremos capazes de planear e aplicar investimento sobre necessidades em saúde e de bem-estar futuras (ao invés de investirmos em contextos e modelos ultrapassados)?

A «bazuca financeira» vem aí. Só com planeamento, compromisso, audácia e solidariedade evitaremos que ela nos rebente nas mãos.

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