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Implicações jurídicas das investigações a Juan Carlos I após abandonar Espanha

Implicações jurídicas das investigações a Juan Carlos I após abandonar Espanha

Num contexto de indefinição e de pressão social e política em Espanha, a saída do país poderá estar justificada pela hipótese real de responder criminalmente, pelo que o exílio só será eficaz se se deslocar para uma jurisdição que não admita extradi

As notícias que têm sido trazidas a público nos últimos meses relativas à alegada prática de crimes de corrupção e branqueamento de capitais pelo Rei emérito Juan Carlos I, enquanto ainda exercia funções como chefe de Estado de Espanha, aumentaram significativamente a pressão sobre o monarca, ao ponto de o motivarem a abandonar o território do país que liderou durante quase quatro décadas.

À margem da especulação que se desenvolve em vários sectores das sociedades espanhola e europeia, justifica-se perceber se a decisão de sair do país no passado dia 3 de Agosto assentou na mera sobrevivência da monarquia, afastando-se por reconhecer que constitui no presente um sério factor de instabilidade para o futuro da Coroa encabeçada pelo seu filho, o Rei Felipe VI; ou se, além deste objectivo, Juan Carlos I acalenta a pretensão de se proteger de possíveis incursões das justiças espanhola e suíça contra a sua pessoa.

Um primeiro esclarecimento visa a hipotética imunidade de Juan Carlos I. A imunidade de jurisdição penal dos titulares de cargos políticos divide-se em duas modalidades distintas: a imunidade ratione materiae e a imunidade ratione personae. A primeira é a imunidade do tipo funcional, ou seja, assenta nos actos praticados em representação do Estado. A segunda, que corresponde à imunidade pessoal, é atribuída a quem for titular de determinadas posições na estrutura do Estado, independentemente dos actos que estiverem em causa.

Regra geral, os chefes de Estado beneficiam destes dois tipos de imunidades ao abrigo do princípio par in parem non habet imperium. Este princípio é cumprido, não para benefício dos próprios titulares de cargos soberanos, mas para protecção da independência dos Estados que os visados representam, em concreto, para garantir o exercício dos seus poderes soberanos em igualdade de circunstâncias com os restantes pares, ou seja, sem qualquer condicionamento passível de viciar a vontade soberana de um Estado – assim já se pronunciou, por exemplo, o Tribunal Internacional de Justiça no caso “Mandado de Detenção de 11 de Abril de 2000 (RDC c. Bélgica)”.

Se os actos praticados antes ou após o exercício de funções não deixam grandes dúvidas quanto à natureza privada dos mesmos e à consequente ausência de imunidade, já é manifestamente controversa a determinação da imunidade dos chefes de Estado quanto aos actos praticados durante o exercício de funções – como são os que estão em causa relativamente a Juan Carlos I. Neste aspecto, os ex-chefes de Estado perdem a imunidade quanto aos actos de natureza privada que tenham praticado durante o período em que se mantiveram em funções e beneficiam de protecção quanto a inúmeros actos oficiais – crimes sancionados pelo direito internacional estão excluídos em determinadas circunstâncias.

Independentemente de os crimes imputados a Juan Carlos I configurarem actos de natureza privada, o ordenamento jurídico espanhol trata esta realidade de forma algo contraditória. Se a Constituição prevê a imunidade do Rei, a Lei Orgânica n.º 16/2015, de 28 de Outubro, sobre privilégios e imunidades dos Estados estrangeiros e das organizações internacionais com sede ou representação em Espanha, dispõe, por um lado, que os chefes de Estado estrangeiros só são invioláveis durante o tempo de duração do seu mandato (artigo 21.º), por outro lado, salvo raras excepções materiais, só reconhece imunidade após o exercício de funções quanto a actos oficiais e não a privados (artigo 23.º).

Portanto, se Espanha não reconhece imunidade a actos privados de chefes de Estado estrangeiros, acaba por admitir tacitamente que actos privados dos seus chefes de Estado não sejam abrangidos pela imunidade perante jurisdições estrangeiras quando essas pessoas cessem funções. Esta regra explica-se, não apenas pela reciprocidade que norteia as relações interestatais, mas também porque a imunidade protege os Estados e os cargos que os representam, não protege interesses individuais.

Neste quadro, a permanência de Juan Carlos em Portugal de pouco serviria e uma solução semelhante à que Portugal adoptou para Manuel Vicente ficaria seriamente comprometida

Este estado das coisas permite concluir que é provável que Juan Carlos I possa responder por actos privados praticados durante o exercício de funções e por outros cometidos posteriormente. Por isso, é possível conjecturar as hipóteses de Juan Carlos I poder ser investigado e julgado por tribunais estrangeiros e de, eventualmente, Espanha poder antecipar-se e reconhecer que os actos privados do seu Rei emérito devem ser alvo da acção da justiça local. Num contexto de indefinição e de pressão social e política em Espanha, a saída do país poderá, assim, estar justificada pela hipótese real de responder criminalmente, pelo que o exílio só será eficaz se se deslocar para uma jurisdição que não admita extradição para Estados europeus com interesse em prosseguir a investigação.

Neste quadro, a permanência em Portugal de pouco serviria, já que as autoridades judiciárias portuguesas estariam sempre obrigadas a executar um Mandado de Detenção Europeu emitido por qualquer Estado-membro da União Europeia e, relativamente à justiça suíça, Lisboa também tem obrigações para com a Suíça decorrentes da Convenção Europeia de Extradição. Uma solução semelhante à que Portugal adoptou para Manuel Vicente ficaria, por isso, seriamente comprometida.

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