rr.sapo.ptOpinião de José Miguel Sardica - 8 jul. 07:14

Contra os bretões, marchar, marchar?

Contra os bretões, marchar, marchar?

Não adiante pedirmos simpatias aos ingleses em nome da história. Como o famoso Lorde Palmerston definiu no século XIX, em diplomacia, “a Grã-Bretanha não tem amigos, mas interesses”.

Segundo Augusto Santos Silva, a Inglaterra, nossa secular aliada, acaba de cometer mais uma perfídia, a saber, excluir-nos da lista de países para onde os súbditos de Sua Majestade podem viajar sem terem de cumprir quarentena no regresso a casa. O ministro acha a decisão “injusta”, “errada” e “até absurda”, um “episódio triste” numa relação bilateral que “teria merecido um outro comportamento por parte das autoridades britânicas”. Talvez à sua batuta todos os portugueses assim ofendidos no seu brio devessem ter um sobressalto patriótico de anti britanismo, como em 1890, contra o humilhante ultimato telegrafado pelo governo de Lorde Salisbury para Lisboa, que obrigou Portugal a renunciar ao sonho do mapa cor-de-rosa de unir Angola a Moçambique. Na contabilidade de casos de Covid por milhão de habitantes, o Reino Unido acumulou, desde março, 4.195 infetados e Portugal 4271. Por aqui, Santos Silva tem razão. Como tem razão em lembrar que há países com rácios piores incluídos na lista inglesa, e que, imprudência por imprudência, as cenas de praias apinhadas ou de pubs desconfinados em ruas cheias de gente embriagada acontecem no Reino Unido e não cá. O problema é que nesta última quinzena os números ingleses cifraram-se em 12,8 casos por milhão de habitantes e os números portugueses em 38,3 casos (mais do triplo). Na apreciação, mesmo que muito empírica, de tendências Portugal está a portar-se mal…enquanto o Reino Unido sabe de si.

O impacto desta exclusão é óbvio no turismo português. Em 2019, quase 20% das dormidas estrangeiras em Portugal foram de “bretões”, subindo aquela percentagem para 63,4% no mercado algarvio. Albufeira, Quarteira, Vilamoura e etc. estão vazias, quando deveriam estar “invadidas” por multidões de ingleses. É mau para a economia, mas deveria talvez servir de acicate aos promotores turísticos do Algarve, e não só, para procurarem estratégias de captação de portugueses ou de nacionais de outros países “clean & safe”. Santos Silva bem pode “marchar” (verbalmente) contra os “bretões” (na verdade, a versão primitiva d’A Portuguesa nunca incluiu essa referência, tornada lendária…); mas melhor fora que o país não dependesse tanto da “monocultura” de turistas britânicos e que, ainda mais importante, tratasse de fazer melhor no combate ao planalto elevatório em que parece estar a Covid por cá. É do interesse inglês que os seus cidadãos não regressem de Portugal com Covid; como também será do interesse português que os ingleses cá não entrem com Covid. No ambiente pandémico atual, suceder-se-ão estes episódios nacionalistas em que cada um cuida de si, sem bondades ou favores diplomáticos. Em 1890, por causa do ultimato e da “pérfida Albion”, o patriotismo dramatizado do protesto antibritânico levou a que nas lojas de Lisboa não se vendesse a ingleses, que nas docas não se descarregassem barcos ingleses, que nos hotéis não existissem quartos para ingleses, que a alta sociedade devolvesse as condecorações inglesas ou que na Universidade e nos Liceus os estudantes fossem dispensados dos exames de língua inglesa. Hoje não vale a pena fazer isso. Mas vale a pena lembrar o que sobre a comoção do ultimato de 1890 escreveu Antero de Quental: “o nosso maior inimigo não é o inglês, somos nós próprios (…) declamar contra a Inglaterra é fácil, emendarmos os defeitos da nossa vida nacional será mais difícil; mas só essa desforra será honrosa, só ela será salvadora”. O respeito alheio não se reclama; conquista-se.
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