sol.sapo.ptsol.sapo.pt - 8 jul. 18:02

As memórias da governanta

As memórias da governanta

A recém-fundada Imprensa da Universidade de Lisboa prestou um belo serviço ao leitor português ao traduzir e editar Monsieur Proust, o testemunho dos últimos anos da vida do grande escritor francês deixado pela sua fiel criada, Céléste Albaret.

Céléste, uma rapariga do campo, chegou a Paris em 1913 depois de se ter casado com um taxista. Este, por sua vez, tinha entre os seus clientes um muito especial... Podia ser exigente ao ponto de se tornar comichoso, mas ao mesmo tempo compensava generosamente aqueles que correspondiam ao seu alto padrão de exigência. Tratava-se, evidentemente, de Marcel Proust.

Sabendo que Céléste estava um pouco desamparada e fora do seu meio, o atencioso Proust perguntou ao seu motorista de confiança se a sua jovem mulher não gostaria de fazer alguns recados para ele, para se distrair. E assim começou uma relação que iria prolongar-se pelos oito anos seguintes. Aos recados seguiram-se tarefas de maior responsabilidade, até que Céléste se tornou a criada pessoal, a governanta e a guardiã da casa de Proust, satisfazendo cada pedido do seu amo, por mais insignificante que parecesse.

Depois da morte do escritor, em novembro de 1922, foram muitos os jornalistas, editores e curiosos que abordaram Céléste para que ela lhes revelasse como era Proust na intimidade naqueles anos decisivos em que escreveu a sua obra-prima, Em Busca do Tempo Perdido. Ela recusou sempre. Até que, cerca de 50 anos decorridos, decidiu confiar as suas memórias a Georges Belmont, um escritor e tradutor, editor do Paris Match e amigo de Henry Miller.

Muitos poderão ter reservas em relação a um livro ‘escrito’ (na realidade, resultou de um conjunto de entrevistas a Belmont) por uma criada. Mas Céléste não era uma criada qualquer – era a criada de Proust. E a convivência intensa e prolongada parece ter levado a que assimilasse algumas das suas qualidades, como o agudo poder de observação ou a subtileza, mas também algum veneno.

Note-se por exemplo esta frase, que resume na perfeição a devoção que Céléste sentia por ele: «Ele tinha aquela elegância suprema de simplesmente ser quem era». Proust não teria escrito melhor. Ou esta outra: «Quando dizia que estava a descansar, eu sabia muito bem que, deitado e imóvel na cama, ele viajava no seu livro e no tempo reencontrado».

A minha mulher, que leu o livro antes de mim, dizia-me que o final, que descreve a morte do escritor, a tinha impressionado muito. Achei estranho, pois normalmente os acontecimentos distantes perdem a capacidade de nos tocar. Por que haveria uma morte ocorrida há perto de cem anos de provocar alguma comoção?

A leitura de Monsieur Proust deu-me a resposta. «Para ele, as recordações nunca eram coisas mortas», diz-nos Céléste. E para ela também não. A razão por que as páginas finais tocam o leitor é que Céléste, com as suas recordações, traz de novo Proust à vida e coloca-o, ora deitado, ora elegantemente vestido prestes a sair, ora «ágil como uma borboleta», mas quase sempre ameaçado pela doença, perante os nossos olhos. E por isso custa tanto vê-lo moribundo e finalmente a sucumbir.

«Ah, Céléste – suspirava ele por vezes –, tudo vai caindo um pouco, como se não fosse mais do que poeira. É como uma coleção de belos leques de outros séculos numa parede. Podemos admirá-los, mas já não há uma mão que lhes dê vida. O facto de estarem fechados numa vitrina é uma prova de que o baile acabou».

Sugestões

Com Borges
{Alberto Manguel}

Um livre breve, mas maravilhoso, sobre uma personagem de génio e os seus prodígios. Alberto Manguel conheceu Jorge Luis Borges quando tinha 16 anos e trabalhava numa livraria de Buenos Aires que o escritor visitava depois do trabalho na Biblioteca Nacional, de que era diretor. Um dia Borges pediu a Manguel que o visitasse e lesse para ele. «O quarto de Borges (por vezes, pedia-me que lá fosse buscar um livro) era o que os historiadores militares chamam ‘espartano’. O mobiliário consistia apenas  de uma cama em ferro com uma colcha branca sobre a qual o Beppo às vezes se enroscava, uma cadeira, uma escrivaninha pequena e duas estantes baixas. [...] Segundo o sobrinho, Borges repetiu toda a vida o mesmo ritual antes de adormecer: enfiava-se numa longa camisa de noite branca e, fechando os olhos, recitava o pai-nosso em inglês». O belíssimo posfácio escrito propositadamente para esta edição – sobre a relação de Borges com a literatura portuguesa e com Portugal – é a cereja no topo do bolo.

Da editora Tinta da China preço 11,90€

Poesia Completa
{Maria Alberta Menéres}

Nove livros e mais de 60 anos de poesia condensados num único volume, compacto e cuidado, que abre uma janela para o ‘mundo adulto’ de Maria Alberta Menéres, porventura mais conhecida pelos seus livros infantis e pela sua atividade ligada à criança. Poemas que vale a pena ler, como aquele sobre a pálpebra, «espada de carne de luz», e que termina assim:

«uma pálpebra é um meio
de ver o mundo vazio
de coisas vazias cheio».

Uma bonita e merecida homenagem, agora que se aproximam os 90 anos do nascimento da autora (25 de agosto de 1930), que conta ainda com um posfácio de E. M. de Melo e Castro, seu marido.

Da editora Porto Editora preço 28€

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