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Grande demais para falhar

Grande demais para falhar

Se um de nós falha por cêntimos a prestação da casa ou do carro, passará a dormir num WC portátil ou a ir para o emprego de triciclo. Os grandes não. - Opinião , Sábado.
Estou decidido a contrair um empréstimo de 3 milhões de euros, na esperança de o estourar de forma tão retumbante que o converta numa dívida de 300 milhões. Caso triunfe nesse intento – não é difícil, gosto de quadros do Roy Lichtenstein, de projetores de cinema caseiros e de Ruinart Rosé –, serei grande demais para falhar. A TAP é grande demais para falhar. O Novo Banco e o Montepio também. Joe Berardo, Luís Filipe Vieira ou Nuno Vasconcellos são igualmente grandes (nem que tenham de mudar de continente por uma temporada). Se um de nós falha por cêntimos a prestação da casa ou do carro, passará a dormir num WC portátil ou a ir para o emprego de triciclo. Os grandes não. Com o patriotismo na estética e o rótulo "Portugal" no organigrama, de cérebro emparedado entre a testa e o bigode ou numa leveza esvoaçante de Mexia, olhos fitos no horizonte como um messias, as megaempresas, os superempresários e os grandes gestores não falham. Até Cronos os ajuda, amaciando as costas da justiça para que os processos que os afligem se arrastem por décadas.

Os grandes podem acumular défices, dívidas, cash flows negativos, depressa convertidos em mais défices, dívidas e cash flows negativos. O flow do cash jamais secará. Se uma empresa, um empresário ou um gestor subirem os degraus suficientes, tornam-se inimputáveis. A falência não é um perigo. A falência é uma formalidade. O despedimento, esse, não existe: a única pessoa que pode despedir um grande é ele próprio. Já perdoar dívida a um gigante é mais fácil que obrigá-lo a saldá-la. E quanto às maiores empresas, o Estado cuida dos seus filhos pródigos: salvar os grandes empresários é "manter o equilíbrio do sistema"; tem "importância estratégica"; é esforço indispensável "em nome do interesse nacional". De chinelos Hermès nas penthouses ribeirinhas ou nas vivendas da Quinta Patiño, rirão o riso dos coringas, respaldados na sua grandeza imobiliária. Para um grande, a única coisa mais valiosa do que a discrição da dívida é a poker face. Dar gargalhadas sim, mas a caminho do banco e atrás de vidros fumados. O pecado venial de Berardo foi ter rido na TV.

Talvez engordar 20 quilos me torne tão grande como os maiores. As linhas do rosto desaparecerão, o que será uma vantagem para disfarçar o descaramento. E os fatos pretos à comendador suavizam a gordura. Quando for grande, quero ser grande demais para falhar.

Santos e...
Agora que pensamos duas vezes antes de usar uma maçaneta de porta, é importante relembrar a sua história. Como Edwin Heathcote salienta na revista Apollo, "o puxador e a evolução do seu relacionamento com a tecnologia e o corpo" (há relações bem mais fúteis do que as que temos com uma maçaneta) "está subdocumentada". A diferença entre os puxadores de ferro das casas da Europa Central no século XVIII e as delicadas maçanetas em bronze fundido dos châteaux franceses da mesma época reflectem barreiras de classe e de comportamento. Foi a art nouveau a dar o grito do Ipiranga das maçanetas, transformando-as em obras de dignidade independente do seu casulo arquitectónico, e Jasper Morrison ou Aldo Bakker deram-lhe estatuto escultórico. Hoje voltou-se ao utilitarismo. Redefinir a estética dos puxadores talvez recupere a vontade de lhes tocarmos.

...pecadores
Para a escritora indiana Arundhati Roy, a Covid-19 é um "portal": ao suscitar cataclismos económicos e vigilâncias estatais cada vez mais autoritárias, a pandemia dá-nos uma visão do futuro. Mas a marca desse futuro é ser uma caixa de ressonância do passado. O coronavírus é o triunfo definitivo do "velho normal": falta de autocarros nas freguesias pobres de Sintra ou da Amadora, comboios da periferia a abarrotar, carruagens de metro atulhadas. A responsabilidade não é dos trabalhadores precários, dos operários fabris ou das empregadas de limpeza que desaguam na cidade rica, é do Estado e das empresas públicas que são incapazes de lhes garantir condições de segurança e alternativas de transporte.
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