António Cluny - 7 jul. 10:17
O júri: uma reflexão atual sobre a participação popular na administração da justiça
O júri: uma reflexão atual sobre a participação popular na administração da justiça
Na justiça como na vida político-social, a intervenção dos cidadãos é, ainda hoje, olhada entre nós com alguma desconfiança.
Uma das coisas que mais degrada a imagem pública da justiça é a desconfiança veiculada, direta ou indiretamente, pelos próprios profissionais do foro relativamente às intenções e retidão do desempenho dos que com eles intervêm num dado processo.
Tal comportamento é ainda mais grave quando se trata de processos criminais com impacto na vida política e social.
Ele põe em causa não apenas o rigor da decisão no caso concreto como afeta sempre a imagem da justiça e a relevância do Estado de direito.
Esse vício é o resultado do círculo fechado em que se desenvolve a habitual atividade processual: o círculo cerrado que congrega juízes, procuradores e advogados.
Quero com isto significar o facto de, muito raramente, o julgamento de casos relevantes ocorrer com recurso ao júri, abrindo-se assim à sociedade a possibilidade e a responsabilidade de esta contribuir para a realização da justiça e, dessa forma, poder compreender e controlar melhor os mecanismos legais que devem orientá-la.
Não acontece assim em muitos outros países europeus.
A intervenção do júri em tais países é norma, e se tal sistema comporta, sem dúvida, alguns inconvenientes – muitos deles relativizados pelas exclusões e exceções previstas na nossa lei –, tem também vantagens acrescidas.
Refiro-me à transparência e clarificação pública das responsabilidades de todos os intervenientes em cada processo e às consequências positivas que daí decorrem para autoridade social das respetivas decisões judiciais.
Em Portugal, o recurso ao júri é voluntário e depende, pois, da vontade da acusação ou da defesa.
A sua utilização é, contudo, rara, mesmo tendo em conta que os comportamentos criminais de responsáveis políticos são, por opção legal, expressamente excluídos dessa jurisdição.
Para a resistência à convocação do júri contribuem, é certo, as dificuldades e burocracias legais na seleção dos jurados, mas, na verdade, não é aí que reside o cerne do problema.
Ele situa-se antes na resistência interna do próprio sistema judiciário ao uso corrente de tal instituto.
A questão é, acima de tudo, cultural: de alguma maneira, resulta de uma tradição autoritária do exercício do poder e da administração.
Ela radica também numa arreigada conceção positivista do direito que vê o julgamento como uma operação eminentemente técnica e que, por isso, deve ser liderada exclusivamente por profissionais experientes, não devendo, pois, ser perturbada pela interferência pouco esclarecida dos leigos que compõem o júri.
Na verdade, na justiça, como na vida político-social, a intervenção dos cidadãos é, ainda hoje, olhada entre nós com alguma desconfiança.
Todavia, dada a relevância social de muitos dos processos e julgamentos que hoje decorrem no nosso país, talvez fosse importante voltar a analisar a questão em toda a sua amplitude e desfechos.
De um lado, porque a utilização do júri poderia afastar, ou pelo menos ajudar a minorar, as suspeições públicas que, nesses casos, sempre se fazem sentir sobre a suposta agenda e isenção da justiça.
De outro porque, dessa forma, se poderia ir introduzindo na aplicação concreta da lei a perceção e sensibilidade que a sociedade vai, em cada momento, desenvolvendo em relação a certos comportamentos sociais, políticos e económicos; e a justiça, para ser socialmente entendida e aceite, não pode prescindir dessa leitura.
Por outro lado ainda, porque, assim, a sociedade, através da intervenção dos jurados, podia ir apreendendo melhor as dificuldades reais que todos quantos intervêm hoje nos processos – juízes, procuradores e advogados – sentem para apurar certo tipo de factos e fazer uma justiça credível e eficaz.
Mas existem, além disso, outras possíveis vantagens de caráter mais técnico que convém analisar.
Refiro-me, por exemplo, à preocupação reforçada que, se convocado o júri, o MP deverá ter ao conceber e preparar a acusação.
Isto de maneira a que a prova a produzir em julgamento – mesmo a mais técnica e complexa – se torne mais especificada e, por isso, mais evidente e clarificadora para todos: juízes e jurados e, portanto, para a sociedade.
Toda a lógica da organização da investigação, da acusação e do julgamento por parte do MP teria necessariamente de ser, neste caso, outra.
Assim se minorava também o impacto nefando das propaladas teorias conspirativas sobre as acusações inverosímeis: narrativas sem fundamento inventadas pela acusação e que apenas são aceites na instrução e provadas em julgamento dado o círculo fechado em que gira o mundo judiciário e os seus magistrados.
Além de que, deste modo, se ampliaria também o peso social da autoridade da decisão judicial – que hoje cabe inteiramente aos juízes –, repartindo-a democraticamente com os cidadãos que compõem o júri; desta forma se erodia ainda a teoria do perigo corporativo do governo dos juízes.
Havendo riscos na normalização do uso do júri – e, dada a influência das redes sociais, eles são evidentes –, teremos, todavia, de questionar-nos seriamente se as vantagens para a legitimação da justiça não lhes seriam hoje superiores.