www.publico.ptpublico@publico.pt - 6 jul. 05:45

Renascer das cinzas

Renascer das cinzas

Depois da aditiva exuberância vivida nestes últimos anos, Portugal arrisca-se a cair, abruptamente, na dura realidade de quem nem sabe o que quer nem como o conseguir. Num tempo em que a ambição é “renascer das cinzas”, às lideranças exige-se muito

No seu livro Capitalism, Socialism and Democracy, Joseph A. Schumpeter (3.ª edição, 1950) refere que o “processo de Destruição Criativa é o elemento central do capitalismo”, descrevendo a entrada de empreendedores inovadores no mercado como força essencial para suportar o crescimento económico de longo prazo, mesmo que o mesmo “destrua” o valor de algumas das empresas estabelecidas e que beneficiam de algum grau de poder monopolista.

Recentemente, no discurso de 10 de junho, o Presidente da República, reinterpretando eventualmente as palavras de Schumpeter, referiu que a pandemia poderá ser entendida como uma “oportunidade singular” para refazer um “Portugal com futuro", tendo apelado a que não se desperdice este momento ao referir que “Portugal não pode fingir que não existiu e existe pandemia, como não pode fingir que não existiu e existe uma brutal crise económica e financeira. E este 10 de Junho de 2020 é o exato momento para acordarmos todos para essa realidade”.

Partilhando as inquietações do Presidente da República quanto ao atual momento económico, financeiro e social, será, no entanto, que poderemos partilhar do seu otimismo quando refere que “somos os melhores entre os melhores”?

Condições de partida para “refazer Portugal”

A ambição de “refazer Portugal” está, obviamente, sujeita às condições de partida, as quais nos dão, de igual forma, uma indicação clara da dimensão da “tarefa”.

Por questões de economia de espaço, identificam-se dez condições de partida, que estão associadas a quatro áreas centrais no funcionamento de qualquer economia moderna: Estado, Empresas, Mercado de Trabalho e Sistema Bancário.

Em primeiro lugar, Portugal apresenta um elevado peso do endividamento público no PIB, agravado por (i) uma curta maturidade da dívida e (ii) uma forte dependência dos não residentes para a sua colocação.

De acordo com o Eurostat, em final de 2019, Portugal apresentava um rácio de dívida pública sobre o PIB de 117,7%, apenas atrás da Itália (134,8%) e da Grécia (176,6%), sendo que 51,7% dessa dívida era detida por não residentes (11.º país mais exposto aos investidores estrangeiros). Por outro lado, Portugal era o segundo país da UE27 com a maior proporção de dívida de curto prazo (17,8% do total da dívida era de curto prazo – maturidade até 1 ano).

Em segundo lugar, as empresas portuguesas apresentam uma fraca capitalização e uma reduzida rendibilidade quando comparadas com as congéneres europeias.

Na realidade, as empresas portuguesas apresentam níveis de capitalização, medidos pela autonomia financeira, abaixo da generalidade dos países europeus (valor médio mais baixo no horizonte temporal 2012-2017 para o conjunto de dez países analisados). De igual forma, a rendibilidade dos capitais próprios é muito modesta (9.º lugar nos dez países analisados).

PÚBLICO - Aumentar

Em terceiro lugar, Portugal apresenta uma estrutura empresarial de dimensão reduzida (medida pelo número de empregados por empresa), situando-se em último lugar, a par da Eslováquia, no universo de 22 países da União Europeia (para os quais existiam dados em 2017).

A forte dependência económica face ao setor do turismo apresenta-se igualmente como fator de preocupação. Na realidade, o setor do turismo é a maior atividade económica exportadora do país, tendo sido, em 2019, responsável por 52,3% das exportações de serviços e por 19,7% das exportações totais. As receitas turísticas registaram um contributo de 8,7% para o PIB nacional, sendo que Portugal se apresenta, segundo o BCE, como um dos países da Zona Euro mais expostos à redução das exportações no setor do turismo devido à covid-19 (juntamente com Chipre, Malta e Grécia).

Em quinto lugar, e apesar de ter registado em 2020 uma ligeira melhoria do seu nível de competitividade (IMD World Competiveness Ranking), situando-se na 37.ª posição num universo de 65 países, Portugal continua a ser um dos países menos competitivos da Europa (18.º lugar no conjunto dos 27).

Por outro lado, e de acordo com a Comissão Europeia, Portugal estava em 2019 no 19.º lugar no contexto da UE28 (17.º lugar em 2017) no que respeita ao nível da digitalização da sociedade, posicionamento que nos coloca em desvantagem num contexto em que as tecnologias digitais terão importância crescente no processo produtivo.

Em sétimo lugar, Portugal apresenta uma estrutura etária bastante envelhecida, com um índice de envelhecimento (número de pessoas com 65 e mais anos por cada 100 pessoas menores de 15 anos) de 157,4 (2018), apenas suplantado, no quadro da UE27, pela Alemanha (158,5) e Itália (171).

Em oitavo lugar, Portugal é um dos países europeus em que a precariedade nas relações laborais é mais elevada. Com efeito, se para o conjunto dos países da UE27 o peso dos trabalhadores (entre os 15 a 64 anos) com contratos de trabalho temporário (no total dos empregados) era de 15% em 2019, em Portugal esse valor situava-se nos 20,8%, ultrapassado apenas pela Polónia (21,7%) e pela Espanha (26,3%). 

Associado aos dois fatores anteriores, Portugal apresenta uma crónica debilidade ao nível da produtividade do trabalho por hora trabalhada (em paridade do poder de compra). Neste campo, Portugal registava em 2018 uma produtividade de 26,1€ por hora trabalhada, valor abaixo da média da UE27 (40,1€) e apenas acima da Polónia, Roménia, Letónia e Bulgária.

Por fim, e apesar da evolução favorável observada ao longo dos últimos anos nos níveis de capitalização do sistema bancário português, o certo é que os mesmos permanecem em níveis claramente abaixo da média europeia, o que permite perspetivar uma menor capacidade de resposta à crise emergente (por exemplo, o rácio de capital total médio em Portugal situa-se nos 16,3%, valor que compara com uma média de 19,3% para o conjunto das instituições bancárias europeias).

PÚBLICO - Aumentar

Saliente-se que, de acordo com um estudo publicado pelo BdP (incluído no seu Relatório de Estabilidade Financeira de junho), o peso, no total dos empréstimos a Sociedades Não Financeiras (SNF), dos empréstimos a SNF pertencentes aos CAE’s mais afetados pela crise da covid-19 (de acordo com a definição do BCE), situava-se, em Portugal, nos 47%, valor este que compara, desfavoravelmente, com os 38% da França, 31% da Alemanha ou 27% da Finlândia.

Ainda vamos a tempo! (?)

As fragilidades da economia portuguesa são alicerces instáveis para um movimento de “destruição criadora”.

Isso não significa, no entanto, que nos desmobilizemos.

Contudo, para nos mobilizarmos precisamos de mais do que simples “aclamações” sobre o alegado sucesso da singularidade portuguesa, como as ilustradas na soberana celebração pelo “acolhimento” de uma qualquer final da Champions League em tempos de pandemia.

Na realidade, e tendo em fundo as reflexões do meu filho Afonso que, do “alto” dos seus 15 anos, me alertava para a importância de termos um “projeto de vida” (que respondesse a duas questões: (i) o que queremos ser? e (ii) como vamos conseguir?), constato que, depois da aditiva exuberância vivida nestes últimos anos, Portugal arrisca-se a cair, abruptamente, na dura realidade de quem nem sabe o que quer, nem como o conseguir. 

Num tempo em que a ambição é “renascer das cinzas”, às lideranças exige-se muito mais.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico​

NewsItem [
pubDate=2020-07-06 06:45:00.0
, url=https://www.publico.pt/2020/07/06/opiniao/opiniao/renascer-cinzas-1922869
, host=www.publico.pt
, wordCount=1127
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2020_07_06_1546691871_renascer-das-cinzas
, topics=[opinião]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]