rr.sapo.ptrr.sapo.pt - 6 jul. 08:02

Especialista em saúde pública. "Não diria que não há infeções em transportes. É uma afirmação política que pode ser danosa"

Especialista em saúde pública. "Não diria que não há infeções em transportes. É uma afirmação política que pode ser danosa"

O membro da direção Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública critica a comunicação ziguezagueante ao longo da epidemia dos responsáveis da Saúde e diz que os especialistas têm também eles faltam de dados para promover ações no terreno. Diz ainda que há casos positivos que não dizem a que com eles vive, por medo de serem desalojados.

Veja também:

Guilherme Duarte é médico de saúde pública na Amadora, e membro da direção associação nacional de profissionais daquela especialidade, e sobre a polémica em relação aos transportes públicos acredita que a média de 50% de ocupação de nada vale porque basta um autocarro, um transporte cheio, para levar a um aumento de infeções.

A saúde pública não é uma atividade exata, e por isso gere muitos cinzentos, tem de pesar muito bem os prós e os contras de cada medida, mas até ao momento e na gestão desta pandemia diz que não há uma estratégia no terreno que se entenda e seja entendida por todos.

A dificuldade de quebrar cadeias de transmissão, explica-a pela falta de qualidade dos recursos humanos no terreno que deriva do escasso investimento que é feito na saúde pública em Portugal.

O mesmo especialista revela ainda que estão a ocorrer coisas muito graves como médicos que depois de um teste negativo, deixam um caso suspeito voltar ao trabalho e à vida social, quando as boas práticas dizem que devia ficar pelo menos 14 dias em quarentena. Os sintomas podem aparecer a qualquer momento nesse espaço temporal.

As condições dos bairros precários e das populações pobres são mesmo um problema concreto que se revela no dia-a-dia dos profissionais de saúde. Há casos em que um telefonema para dar conta de que a pessoa é positiva, acabam com a súplica do outro lado do telefone para que isso não seja dito aos coabitantes. O medo de expulsão da casa é maior do que o de infeção dos outros.

Tal como em muitas outras dimensões desta pandemia, também em relação aos transportes públicos tem havido alguma informação contraditória. Há quem defenda que é um lugar de alto risco da doença, mas também já ouvimos a ministra da Saúde, Marta Temido, a dizer que até ao momento não se registou nenhum contágio com origem em comboios ou autocarros. Afinal em que é que ficamos, há ou não há um risco elevado andar nos transportes públicos?

Para ser muito concreto em relação à pergunta, não acho que sejam duas vertentes contraditórias. Em primeiro, podemos ter ou não informação suficiente para dizer que até agora tem havido contágio devido aos transportes. Pode ser verdade, mas podemos não ter essa informação. E claro que também nos temos de nos lembrar que o facto de haver ausência de informação, não comprova que ela não exista.

Em relação às informações contraditórias, elas existem sem dúvida. E penso que isso se refere muito à contradição que é feita do ponto de vista comunicacional do que é que são conceitos técnicos ou do que é que são conceitos de ponderação política.

Em termos técnicos, do risco de contágio, o que realmente interessa, o que determina a possibilidade de contágio é a presença física, a proximidade física, um aglomerado, especialmente em lugares confinados. Aí os transportes também se incluem, e depois a presença demorada em mais de cinco, dez, quinze minutos [em determinado lugar], tudo isso aumenta o risco. É por isso, que recomendamos às pessoas a não estarem em lugares confinados, e a usarem a máscara quando frequentam esses lugares. São estratégias para reduzir o risco.

Os transportes se forem fechados e confinados − nos quais as pessoas vão muito próximas e muito aglomeradas − não há como não dizer que representa um risco. Se me diz, é algo que tem de ser absolutamente evitado, posso dizer que há estratégias para desagravar esse risco.

Agora nas horas de ponta em que as pessoas estão umas em cima das outras, aí é inegável que o risco é aumentado. As pessoas não conseguem ter espaço, nem estratégias para se protegerem a si próprias.

Não é político, mas como médico quando ouve o ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, a dizer que em média a taxa de ocupação dos transportes públicos é de 50%, e que só em meia dúzia de casos por dia é que essa taxa ultrapassa os 2/3, isto é um argumento que tecnicamente pode ser usado para dizer que não há um problema com os transportes?

Tem de haver ponderação e bom senso, reconhecemos que há um problema. Se me diz que as carreiras que estão sobrelotadas representam um problema, sem dúvida.

Idealmente devia fazer-se alguma coisa acerca desses transportes. Se os números forem esses, nem é uma situação muito má, agora é evidente que é preciso evitar um qualquer transporte que leve aglomerados. Basta um autocarro, um transporte cheio − com pessoas que não utilizam máscara, não têm cuidados e não ficaram em casa apesar de terem sintomas − para levar a um aumento de infeções.

Mas isso não se resolveria com a determinação de um número máximo de passageiros para os comboios, sendo que quando for ultrapassado esse número não seria possível entrar?

Penso que sim, era algo que era preciso fazer. Agora haverá sempre uma ponderação económica, é possível ou não é possível, e depois temos de entrar nos cinzentos. A saúde pública, acaba por não ser um campo de branco ou preto.

Temos de ponderar os ganhos e as perdas. Quando estamos a fazer uma recomendação e estamos a dizer, muito bem há uma lotação, mas e se não houver transporte para as pessoas, elas deixam de ir trabalhar, diminuem a sua produtividade económica, e temos problemas para as pessoas que não conseguiram trabalhar, nem pôr comida na mesa.

Temos de ponderar tudo e ver o que é melhor. Temos de ter cuidado em ser muito incisivos em intervenções que acabam por prejudicar. Acaba por ser pior a cura do que a doença, temos de ter esta proporcionalidade e bom senso.

Deve haver o esforço efetivo, não deve ser só comunicacional, nem político − no sentido de propaganda − devem arranjar-se alternativas para as pessoas que têm de recorrer aos transportes públicos e que não podem ser prejudicadas ao não conseguirem proteger-se.

Depois do desconfinamento, as festas de jovens foram consideradas uma das maiores razões do contágio, entretanto isso foi desmentido pelos técnicos numa reunião no Infarmed onde revelaram que a origem estava centrada em contextos laborais e habitacionais. Mas afinal como se determina a origem de uma infeção, para se dizer taxativamente que ela acontece num sítio e não noutro?

Antes vou dizer que a comunicação, por vezes, é feita erraticamente. O facto de termos dados que nos mostram que há um aumento de dados num certo meio, não faz com que no global toda a transmissão tenha sido feita nesse determinado meio.

Tendo em conta a qualidade da informação que temos tido, parece muito precoce avançar com grandes causas. A questão dos jovens é paradigmática de algo que não podia ser feito. Acho que estávamos a extrapolar algo e a acusar uma franja etária de irresponsabilidade, quando na verdade me parece que não temos dados suficientes para dizer isso.

" A questão dos jovens é paradigmática de algo que não podia ser feito. Acho que estávamos a extrapolar algo e a acusar uma franja etária de irresponsabilidade, quando na verdade me parece que não temos dados suficientes para dizer isso"

A determinação da origem faz-se com a investigação epidemiológica no terreno, o que é que isto quer dizer? Quer dizer que quando detetamos um caso, vamos investigar à volta todos os contatos que esse caso gerou, pessoas saudáveis que estiveram em contato com uma pessoa sintomática, infetada e contagiada através desses contatos. Percebemos os que vão passar de contatos para casos também, se houve infeção e contagiou. Preenchendo os inquéritos epidemiológicos e reportando essa informação, percebemos com a informação agregada qual a transmissão e o tipo de transmissão.

Quando se diz que nenhuma das infeções aconteceu num transporte público, pode-se fazer esta afirmação?

Não acho que tenhamos um sistema de informação, ou de vigilância, suficientemente robusto para conseguirmos esse tipo de afirmação. Sabemos que as equipas no local estão exacerbadas até para implementar as medidas de controlo. O primeiro passo do inquérito epidemiológico é colocar as pessoas em isolamento ou quarentena. Agora não estão casos atrasados, mas já houve muitos casos atrasados à espera para serem implementadas as medidas de controlo, quanto mais para fazer uma investigação minuciosa de toda a informação associada a esses casos. Essa investigação de facto não é feita de forma especifica para nós podermos afirmar isso.

Então não o diria?

Eu não o diria. É um salto lógico complicado. A ministra está a dar a informação que lhe deram. Disseram-lhe que não têm evidência de casos transmitidos, mas as equipas no local não estarão a fazer inquéritos minuciosos porque não têm capacidade de o fazer. Nem o sistema o permite, o inquérito é uma quantidade enorme de perguntas, não existe a disponibilidade que devia haver, para fazer esse tipo de análise tão fina.

Não acha que esse tipo de afirmação pode levar a relaxamento das pessoas que andam nos transportes públicos?

Acho que sim, e volto a dizer que há afirmações que são tidas no campo técnico, e outras que o são no campo político. Parece-me que é uma afirmação política e que pode ser danosa.

Em relação a isso, eu defendo e tenho defendido que deveria haver uma comunicação de risco feita por alguém tecnicamente capacitado para o fazer, sob pena de termos esta comunicação errática que temos visto desde o início. Andamos aos ziguezagues em que vamos dando “soundbytes” em que as pessoas acabam por ficar confusas.

É inexplicável porque é que manifestações de cariz político são permitidas, sejam elas o mais legitimas possíveis, mas outros ajuntamentos sejam de cariz pessoal, como funerais ou festas de aniversário, não o são. Do ponto de vista técnico não há razão e é inexplicável. O risco mantém-se. O risco é o mesmo quer a pessoa esteja a trabalhar, quer a pessoa ande em transportes ou na praia. O risco gere-se por estes critérios de proximidade, de contagiosidade, do uso de equipamentos de proteção individual. Tudo isso entra na equação, não na atividade que estamos a fazer.

Referiu a dificuldade dos técnicos no terreno em recolherem informação, e de em tempo útil o conseguirem fazer. No seu trabalho e dos seus colegas, a falta de dados para fazer uma análise mais fina e fazer assim políticas de saúde pública mais efetivas são um problema concreto?

Sim, é um problema concreto. A saúde pública é uma área em que tem havido desinvestimento. O relatório da OCDE de 2018 diz que Portugal foi dos três países da Europa que desde o ano 2000 acabou por desinvestir na saúde pública. E esse desinvestimento acaba por ter estas consequências. Chegamos a uma pandemia e não temos um sistema de vigilância que funcione. Temos um sistema de informação, muitas vezes construído para debitar informação, que não permite nem analisá-la, nem mastigá-la, nem permitir a recolha rápida. Nunca foi uma prioridade facilitar a colheita dessa informação, nem ter um sistema capaz de processar a informação em tempo útil.

Não será um pecado de agora, mas um pecado que já vem de trás, e que dificulta bastante a nossa atividade.

A jusante esse facto cria mais infetados, mais contágios e mais vítimas mortais desnecessárias?

Quando nós não temos informação − que não serve só para ser esgrimida na esfera pública – ela é fundamental para decidir políticas, porque quando não temos informação fidedigna, o mais especifica possível, com menos viés, e recolhida de forma abrangente, é muito difícil implementar a política correta.

Já não é uma questão de vontade, mas é uma questão de estarmos a navegar à vista. As doenças infeciológicas são doenças em que tem de ser investido, e requer despesa pública. Quando não existe essa vontade, acaba por ser difícil.

"É inexplicável porque é que manifestações de cariz político são permitidas, sejam elas o mais legitimas possíveis, mas outros ajuntamentos sejam de cariz pessoal, como funerais ou festas de aniversário, não o são. Do ponto de vista técnico não há razão e é inexplicável. O risco mantém-se"

Esta situação colocou esses problemas a nu?

Penso que si, veio abanar um sistema de saúde pública, que muitas vezes é confundido com o Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas quando falo em saúde pública não me refiro à saúde do público no geral, mas a esta especialidade, que não é só médica, é feita por equipas multidisciplinares, médicos, enfermeiros, mas também técnicos de saúde ambiental, devia ser abrangida a outras profissões, nomeadamente “data analysts”, nutricionistas, psicólogos, que se dediquem a promover a saúde.

Um dos programas que faço no centro de saúde da Amadora é de vigilância entomológica, vigilância de vetores no local, algo que no dia-a-dia não diz nada a ninguém. Mas é algo que é importante que seja feito sistematicamente para que um dia que tenhamos um mosquito invasor a introduzir uma doença no nosso país, o sistema esteja preparado. Agora se decido desinvestir totalmente nestes programas, que são fundamentais, amanhã temos uma emergência como tivémos o dengue em 2012, na Madeira, e não teríamos capacidade de reagir.


A saúde pública precisa de um investimento cego em que não se veem logo os resultados.

Voltando à questão dos transportes públicos, pedia-lhe que sintetizasse boas práticas que as pessoas devem ter quando os frequentam?

O fundamental, e mantendo o foco no meio de transmissão principal que é pessoa a pessoa através de gotículas respiratórias ou partículas aerossolizadas, o importante mesmo é utilizar máscara, tentar manter distância entre as pessoas, a máxima possível− cruzarmo-nos com outros ao entrar na porta, durante aqueles segundos, não acarreta um risco por demasia. Obviamente, devemos evitar estar em cima da pessoa diretamente, cara a cara. Devemos olhar para as janelas, especialmente se tivermos pessoas que não estão a usar máscara, ou que estão visivelmente doentes, a tossir e a espilrar. As pessoas doentes, mesmo com sinais ténues, devem ligar ao seu médico de família e ficar em casa, porque podem representar um perigo para todos os outros.

Deve-se também evitar tocar nas superfícies, apesar de a via de transmissão indireta ser em termos de peso de transmissão menor. Apesar de ser biologicamente possível, na prática no nosso dia-a-dia parece ser menos possível.

Conhece algum caso em que se tenha atribuído a infeção ao contato com superfícies?

Diretamente não. Poder dizer que foi um caso de transmissão indireta, não conseguimos. As investigações, neste momento, não são assim tão minuciosas.

Fica-se pela análise de transmissão direta?

Sim, porque quando estamos a aferir o contato apesar de ser fundamental perceber o tipo de contato que foi, normalmente acaba por ser um contato presencial [a prevalecer]. Não estamos a investigar com esse nível de especificidade. Até porque não há capacidade para o fazer. É mais importante implementar as medidas de controlo, do que fazer investigações minuciosas. Isso a academia também dedicar-se-á mais tarde a fazer essa investigação, que é o papel dela.

A região de Lisboa e Vale do Tejo está a ser o principal foco da doença desde o desconfinamento. Qual é a principal razão para que isso suceda nesta zona do país?

Penso que será multifatorial, mas ao contrário da opinião veiculada, acho que será o desconfinamento. Já sabíamos que ao limitar o contato pessoa a pessoa...

Mas houve desconfinamento em todo o país…

Sem dúvida, mas porventura havia cadeias de transmissão formadas aqui na região de Lisboa e de Vale do Tejo. Lisboa é um pólo de trabalho e de transportes. Há muitas pessoas que trabalham noutras regiões e vêm a Lisboa, acabam por passar a semana aqui e depois voltam para às suas regiões.

Outro fator será a capacidade das equipas locais em investigar e cortar estas cadeias de transmissão, será um calcanhar de aquiles que pode estar aqui presente. E outro fator, que no meu trabalho se sente, são as vulnerabilidades sociais. É mais difícil isolar ou pôr em quarentena pessoas que estão com vínculos laborais precários e não podem mesmo deixar de trabalhar.

Nós fazemos essa recomendação, a pessoa pondera a questão de não trabalhar ou não colocar a comida na mesa, e nenhum ser humano consegue julgar essa opção. A questão habitacional também é importante, ao haver grandes aglomerados de pessoas que residem na mesma habitação, é impossível fazer um isolamento.

Muitas delas estão assintomáticas e sentem-se bem e vão trabalhar na mesma, apesar de serem confirmadamente positivas. A questão dos rastreios massivos, também pode ter causado um descontrolo das próprias unidades, porque fomos testar pessoas assintomáticas, e sobrecarregamos as entidades com este processamento de casos, quando elas já estavam com casos atrasados.

Porque é que há uma dificuldade extrema, como disse a ministra Marta Temido, de quebrar as cadeias de traição. Isso acontece porque se deixou chegar a um ponto em que é extremamente complexo perceber a origem, ou porque faltam meios técnicos e humanos para o fazer?

Será um pouco dos dois. Não sou eu que o digo, basta ver os documentos do Centro Europeu de Doenças e Prevenção e Controlo e da John Hopkins que estimam as necessidades de locais, de recursos humanos e materiais para fazer esta atividade de reestreio e de contato. O que me parece é que a saúde pública é gerida um bocadinho de forma mais displicente neste sentido. Se precisarmos de fazer cirurgias cardíacas, não vamos buscar voluntários ou pessoas que não são especializadas na área. Na saúde pública há muito esta tentação, a de ir biscar recursos menos capacitados à academia, ou noutras entidades, que nunca realizaram ações de saúde pública para ajudar. Continuamos a cair neste erro.

Obviamente que não se espera num período de transmissão disseminada, será muito difícil identificar todas as cadeias de transmissão. É algo que a dada altura é difícil.

"Se precisarmos de fazer cirurgias cardíacas, não vamos buscar voluntários ou pessoas que não são especializadas na área. Na saúde pública há muito esta tentação, a de ir biscar recursos menos capacitados à academia, ou noutras entidades, que nunca realizaram ações de saúde pública para ajudar. Continuamos a cair neste erro."

Porque é que não se cortam cadeias de transmissão?

Porque a saúde pública não é algo tão controlado como um bloco operatório. Num bloco sabemos que injetar adrenalina, 99,5% das reações são aquelas que estão amplamente estudadas. Numa intervenção em saúde pública, temos as pessoas, a sociedade, as condições. Nós quando pedimos a uma pessoa para ficar em casa, a multitude da dimensão humana pode fazer com que a resposta pode não ser positiva. Se calhar é mais fácil cortar cadeias de transmissão no centro de Lisboa, ou em zonas da capital economicamente mais favorecidas do que na Amadora ou em Odivelas, em que as pessoas têm condições diferentes.

Estando no terreno, concorda com as declarações do presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina? Faltam generais e a estratégia não está a ser aplicada no terreno?

Antes começava por discordar de uma declaração feita pelo doutor Fernando Medina, que disse agora que era impensável que não se fizessem inquéritos aos fins de semana. Os inquéritos continuam a ser feitos, a unidade de saúde pública da Amadora está a trabalhar sem parar desde o início da pandemia. Têm sido feitas rotações, com grande falta de recursos humanos.

Eles são feitos, e quando não são, é por falta de recursos para o fazer. É uma mensagem meio estranha, a da paragem dos inquéritos, quando ela não existe.

Mas voltando à pergunta, há falta de recursos, há falta de recursos capacitados. Há falta de planeamento.

Então não é a estratégia que está errada, há é falta de capacidade de a concretizar...

Se me disser qual é a estratégia que temos tido, podemos avaliá-la em conjunto....

Não há, portanto, uma estratégia coerente aplicada no combate à pandemia pelas autoridades?

Desde o início que foi muito difícil de perceber. No início confinamos bem, fizemos o que tínhamos de fazer, ganhar espaço, e tempo, para o SNS se adaptar, mas quão mais para a frente andamos, mais difícil é perceber o que andamos a fazer. Rastreámos massivamente todas as pessoas, mas depois caímos no erro de as pessoas ficarem dias e dias à espera do teste e enquanto estavam à espera do teste iam trabalhar, fossem contagiadas ou não, continuavam a criar cadeias de transmissão.

Temos a questão de ainda não estar percebido para que é que serve o teste. Por si só não é suficiente. Dá-nos uma imagem imediata. Quando estamos a investigar casos e contatos, quando identificamos um caso, temos de pôr em quarentena todos os casos identificados. Isso não é inviabilizado por fazer um teste. Quando fazemos um teste a esses contatos e dá negativo, eles ainda podem desenvolver a doença durante os 12 a 14 dias de período de incubação. Existe o erro, há a falta de uma norma que o diga, as pessoas têm de ficar de quarentena, não podem ir trabalhar.

Isso não está a acontecer...

Não, as entidades patronais fazem testes aos trabalhadores e mandam-nos trabalhar porque estão positivos.

Os casos suspeitos relacionados com um caso positivo, não estão a cumprir a quarentena...

Muitas vezes não estão, por falta da perceção de que é preciso de cumprir a quarentena independentemente de um teste negativo ou não.

A estratégia do testar, testar, testar, foi mal interpretada. É preciso testar, mas com os pressupostos técnicos. Foi uma reação à fase inicial em que não havia testes, é natural porque o nosso sistema não está capacitado para um teste que é novo. Até conseguir atingir a capacidade laboratorial demorou algum tempo, mas agora que a temos, é fundamental haver uma orientação clara de como é que os testes são usados.

Vemos essa confusão até em unidades de saúde, até em colegas bastante capacitados, que acham que fazendo o teste à pessoa e se ela for negativa pode retornar à comunidade, o que não é verdade. Ainda poderá estar em período de desenvolver a doença.

Mas esses procedimentos não deviam estar todos normalizados?

Deviam.

Porque é que não estão?

Tem de perguntar às entidades que têm a responsabilidade técnico-normativa, porque é que não estão implementados e percebidos. Continuamos a nível local a ter estas confusões.

Temos esta confusão em diversos parceiros, temos esta confusão da Segurança Social, de quem gere os lares − em que houve rastreios massivos. Temos também confusão das forças autárquicas. Temos uma falta de liderança seja por falta de recursos − ou não se chegarem à frente quando era preciso − e que tem causado esta entropia na resposta.

Sente que as pessoas na Amadora, que é o concelho que melhor conhece, nos bairros mais carenciados e pobres sentem o estigma de uma ligação que é feita com a doença?

Não sinto racionalmente que haja esse estigma, mas as respostaa e as reações acabam por ser interessantes, mas díspares.

Em primeiro, já ligámos a algumas pessoas que dizem que os coabitantes não podem saber que eles estão positivos, senão podem considerar pô-los dali para fora. Vê-se receio e preocupação, e algum estigma.

Há pessoas positivas que continuam a coabitar com outra e não sabe que ela está infetada....

Pode acontecer e esse é um dos problemas da implementação do controlo.

"Já ligámos a algumas pessoas que dizem que os coabitantes não podem saber que eles estão positivos, senão podem considerar pô-los dali para fora."

Isso é muito grave..

Sim, é grave quando não dá para fazer o isolamento correto. Nesta doença apenas algumas pessoas vão para os hospitais. Nós hoje sabemos que 80% da doença, se calhar 86% a 87% as pessoas estão em casa.

A resposta correta é que as pessoas cumpram os períodos de isolamento em casa, nos seus domicílios, isso é mais difícil quando o partilham com alguém. Aí tem de haver uma aferição especial, quem vive e em que condições, e daí parte do inquérito tentar perceber essas condições sociais para entender se há condições ou não das pessoas fazerem isolamento.

Ai é que devia entrar a resposta social...

Houve algumas coisas feitas, na Amadora há algumas respostas no terreno, como a de colocar pessoas em alojamentos próprios. Existe essa resposta, ela tarda, demora, mas começa a ser feita.

Para terminar, como médico de saúde pública o que mudou durante esta pandemia sem precedentes?

Mudou o facto de trabalhar horas muito mais infindáveis, confesso que há alturas em que só penso no Covid.

Tenho feito o meu trabalho todo a partir de casa, isso é uma mudança. A minha família passou a ser os meus colegas. Estamos a viver uma altura para a qual estudamos. Vermos as coisas a serem geridas de uma forma um bocadinho menos desejável, pelo menos com os nossos standards de exigência.

NewsItem [
pubDate=2020-07-06 09:02:00.0
, url=https://rr.sapo.pt/2020/07/06/pais/especialista-em-saude-publica-nao-diria-que-nao-ha-infecoes-em-transportes-e-uma-afirmacao-politica-que-pode-ser-danosa/especial/198999/
, host=rr.sapo.pt
, wordCount=4016
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2020_07_06_1330016432_especialista-em-saude-publica-nao-diria-que-nao-ha-infecoes-em-transportes-e-uma-afirmacao-politica-que-pode-ser-danosa
, topics=[informação, país]
, sections=[sociedade]
, score=0.000000]