www.sabado.ptleitores@sabado.cofina.pt (Sábado) - 6 jul. 07:44

De que turismo temos falta?

De que turismo temos falta?

O turismo que temos vindo a conhecer e praticar nas últimas décadas banalizou o aspeto excecional da viagem e do encontro com o desconhecido. - Opinião , Sábado.

Falar de turismo em época de pandemia é algo controverso, não apenas pelas razões sanitárias que implicam prudência nas deslocações, mas também por sabermos que os tráfegos aéreos, marítimos e rodoviários têm uma parte de responsabilidade na deterioração do equilíbrio ecológico que, por sua vez, tem outra na difusão do vírus. Bastaria recordar como voltaram a resplandecer muitos lugares naturais do planeta durante a quarentena. Contudo, sabemos que é redutor ligar a crise ecológica aos transportes, a causa principal, como foi salientado pelos climatologistas, reside nas emissões de CO2 libertadas pelos combustíveis fosseis, a mudança ecológica depende daquela energética (descarbonização, hidrogénio verde e eletrificação). De qualquer forma, não parece muito responsável auspiciar que o modelo turístico pré-Covid retorne como era antes tão rapidamente, hoje é o momento ideal para aproveitar do impasse e repensar o que torna significativa e importante a experiência turística.

O turismo que temos vindo a conhecer e praticar nas últimas décadas banalizou o aspeto excecional da viagem e do encontro com o desconhecido. A carga e descarga frenética de pessoas pelos aeroportos das cidades europeias tornou-se habitual, a correria de trolleys pelas ruas em busca de alojamentos em processo de desalojamentos sincronizados entre check-in e check-out desenha parte do cenário urbano, a transformação dos bairros históricos em lugares que imitam lugares que, por sua vez, recalcam a tipicidade cool de lugares alheios criaram, na sua globalidade, um efeito pouco sedutor da experiência turística. Todavia este padrão alastrou-se. Os encurtamentos dos dias de estadia no estrangeiro (2 ou 3 dias) mal justificariam viagens de três ou quatro horas de voo, mas como explicava o sociólogo Zygmunt Bauman, a ética contemporânea deixou de assentar no princípio do quero, então posso, passando para o do posso, então quero. Também quem escreve não é refratário a esta deriva cultural.

Tenho consciência que este discurso possa parecer elitista e antiquado, de facto não se podem desconsiderar as inúmeras tipologias de emprego ligadas ao turismo em países como Portugal. Mas a ideia não é a de demonizar o turismo de massa, mas reconfigurá-lo segundo novos critérios de gestão cultural, descentralizando as suas atividades e diferenciando os seus polos de atração. Até agora foi um modelo baseado na exploração ávida dos territórios e na abordagem aos turistas como fossem mercadorias.

Um guia sobre o Egito do início do século passado destacava logo na introdução como este seria um país magnifico e fácil de se visitar em apenas três meses. O turismo e a experiência do viajar tinham alguma contiguidade, o atravessamento dos territórios, o olhar desperto face ao inédito, a relação com os habitantes dos lugares, a cultura da hospitalidade informal, o aproveitamento do tempo esticado e suspenso. Hoje esta contiguidade evaporou, somos bilhões de seres humanos a deslocarem-se para lugares aprontados para nos receber e entreter numa janela temporal previamente balizada. Todavia, no livro Voyager sans avion, Cindy Chapelle e Audrey Baylac enfatizam a possibilidade dum novo resgate da experiência turística, onde a dimensão slow da mobilidade permitiria valorizar o deixar-se ficar e transportar pelo que o contexto geográfico e cultural do local oferece, vivenciando os lugares sem os atravessar apressadamente. Um turismo de baixa intensidade (mas difuso) que seria uma modalidade perfeitamente coerente com o espírito do tempo presente propiciado pela pandemia.

E aqui encontramos uma outra dimensão da experiência turística, aquela tradicionalmente ligada ao enriquecimento cultural espoletado pelo encontro com culturas diferentes. O poeta judeu-egipciano Edmond Jabès escrevia: "O estrangeiro permite-te seres tu mesmo, fazendo de ti um estrangeiro". A globalização agilizou e intensificou estes processos, em alguns casos podemos até considerar como tais fluxos turísticos a reforçaram, muitos países abriram-se ao olhar externo encontrando uma nova maneira de se olharem a si próprios e ganhar uma sensibilidade cosmopolita, algo que nos países autoritários não é muito bem-vindo. A oportunidade de confrontar-se com o mundo reativou o interesse pelas próprias diferenças culturais e o reaproveitamento de patrimónios locais que se pensavam como relíquias sem vida e de interesse apenas para historiadores. Neste sentido, a renovação da vida social nas localidades turísticas dever-se-ia ler como uma sã hibridação cultural, resultado dum cruzamento entre olhares e exotismos reinventados. Este cenário cultural do turismo não é o mesmo que se tem vindo a padronizar nos últimos anos, isto é, o do negócio (cuja etimologia é a negação do ócio, nec otium) baseado no "mastigar e deitar fora", o qual não faculta qualquer interesse narrativo, nenhuma curiosidade, prejudicando a cultura da hospitalidade.

Se recuperarmos e relançarmos uma ideia de turismo assente na curiosidade e na hospitalidade, nas visitas a territórios que não são ajeitados "para turista ver", mas que refletem um normal processo de hibridação com as mudanças culturais, podemos contornar também o outro aspeto controverso presente nos discursos sobre o turismo, o da descaraterização cultural das localidades turísticas. Se por um lado é benigno que as identidades culturais revindiquem e valorizem a própria diferença e peculiaridade, por outro sabemos também que não existe coisa mais triste do que uma cidade ou um território sem estrangeiros a estimularem a troca de olhares e a abertura ao inédito.   

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