www.publico.ptpublico@publico.pt - 5 jun. 01:20

Uma escola sem Corpo?

Uma escola sem Corpo?

Uma escola sem Corpo pode talvez existir durante este período de tempo de “Educação de Emergência”, como muito bem designou Javier Aragay. Mas é um sucedâneo, uma pobre imitação. Será certamente uma louvável tentativa de remedeio, mas não é “the rea

“Nada alberga tanto de sonho
Como o Corpo que somos”

Sabemos que é para aí que os exercícios de previsão do futuro nos têm levado… para pensar que os nossos cérebros vão ser cada vez mais importantes, mais decisivos e maiores e que o nosso corpo se vai ao mesmo tempo atrofiando e tornando inútil. Nasce daqui a ficção de pessoas com cabeças enormes e com corpos raquíticos e muito pouco úteis. Na verdade, a grande utilidade destes corpos seria a de levar o cérebro de um lado para o outro… Não é inusitada esta ficção. A humanidade – sobretudo nas sociedades com maior incorporação de tecnologia – foi substituindo o trabalho dito “braçal” por máquinas cada vez mais sofisticadas na sua conceção e operação. Parecia que o corpo teria tendência para ser considerado descartável. E, se “a função faz o órgão”, seria linearmente compreensível que o órgão que mais é solicitado aumente de tamanho (o cérebro), e os órgãos menos solicitados se atrofiem.

Esta visão morfo funcional catastrofista tem o mérito de nos alertar para os novos significados e os novos entendimentos que emergiram sobre o corpo. O corpo continua, na verdade, a ser uma permanente inovação. Se estivermos atentos, veremos que não se passa um dia sem que se noticie uma descoberta, um novo entendimento, a compreensão de um novo fenómeno sobre o corpo. (Veja-se a este propósito o que se aprendeu sobre a relação entre o novo coronavírus e o nosso sistema imunológico). O corpo é certamente o manancial mais inesgotável de entendimentos antropológicos, sociológicos, médicos, educacionais, de expressão, de rendimento, de desempenho, etc. Esta visão de um corpo inesgotável de possibilidades, de complexidade e de dinâmica, contrasta fortemente com a visão de um corpo que se vai tornando mirrado, atrofiado e inútil.

À medida que mais vamos conhecendo sobre o corpo, mais entendemos que o corpo não fica menos importante à medida que se liberta de ser instrumento de trabalho. Pelo contrário, o corpo assume nas sociedades contemporâneas novos significados e novas relações.

Perante toda esta complexidade do corpo, torna-se impossível entender uma educação sem ele. Tolentino de Mendonça alerta-nos para isto mesmo ao escrever: "Não é possível excluir o corpo da escola, pois é através dele que damos significação ao mundo, maturando os diversos saberes e exercitando a responsabilidade pela inteira existência.”

Mas afinal, e substantivamente, porque é tão essencial o corpo na Educação? Diria que por três ordens de razões. Antes de mais, o corpo é a sede da experiência. Reputados estudiosos do desenvolvimento, como por exemplo Jean Piaget, não hesitam em fazer nascer a inteligência de uma experiência “sensório-motora” que é – numa formulação muito simples – o material sob o qual se vão estabelecer as primeiras causalidades e relacionamentos. E é sobre estas primeiras relações entre o que se recolheu na experiência sensorial e motora que vão ocorrer comportamentos que chamaríamos de “inteligentes”. Portanto, a vivência e a experiência corporal são essenciais para a aprendizagem.

O corpo é ainda essencial dada a sua profunda e indissociável relação com todo o comportamento humano. Nada seria mais redutor do que regressar àquela velha dicotomia escolástica, tão bem problematizada por Manual Sérgio, que colocava como diferentes e até mesmo opostos o corpo e a mente. Na verdade, não é possível deixar o cérebro pendurado com a roupa no balneário quando se vai fazer desporto. O nosso comportamento não é fruto exclusivo de uma coisa ou outra. Não é difícil encontrar vestígios desta dicotomia: ainda hoje designamos por Educação “Física” uma imprescindível área curricular que trata da experiência motora. Esta oposição entre “corpo e mente” é categoricamente desmentida por inúmeros estudos que mostram, por exemplo, que a prática de atividades motoras repercute positivamente no aproveitamento académico. Estes estudos derrubam a falsa e feita ideia que os “bons alunos” têm, por norma, pouca motivação (e “jeito”) para o desporto.

Estamos todos ansiosos por nos tocarmos, nos abraçarmos, por brincarmos juntos, por jogarmos, por correr, nadar, dançar. A nossa experiência corporal está quase a chumbar por faltas. Estamos ansiosos por “pensar com o corpo”

Existe ainda um outro aspeto essencial: o corpo como veículo e como sujeito de comunicação. Muito se tem falado – e bem – do afunilamento que a comunicação humana sofre quando se processa através de ferramentas digitais. Não é de estranhar: durante milhões de anos aprendemos a “ler” o corpo dos outros e a recolher informações da comunicação que vão muito para além da informação e “do que é preciso dizer”. A comunicação humana “face a face” é certamente a grande alavanca que usamos para o nosso desenvolvimento e para a educação. Quando esta comunicação fica diminuída na sua complexidade, quando fica “confinada” à conversa em frente ao ecrã, muito se perde em motivação, em incentivo, em compreensão e em feedback.

Por isso, a resposta à pergunta formulada parece óbvia: “Uma escola sem Corpo” pode talvez existir durante este período de tempo de “Educação de Emergência”, como muito bem designou Javier Aragay. Mas é um sucedâneo, uma pobre imitação. Será certamente uma louvável tentativa de remedeio (como aliás se tem visto com a criativa reinvenção que estão a levar a cabo os professores de Educação Física no ensino remoto), mas não é “the real thing”…

Estamos todos ansiosos por nos tocarmos, nos abraçarmos, por brincarmos juntos, por jogarmos, por correr, nadar, dançar. A nossa experiência corporal está quase a chumbar por faltas.

Estamos ansiosos por “pensar com o corpo”.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

NewsItem [
pubDate=2020-06-05 02:20:00.0
, url=https://www.publico.pt/2020/06/05/opiniao/opiniao/escola-corpo-1919242
, host=www.publico.pt
, wordCount=903
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2020_06_05_882035469_uma-escola-sem-corpo
, topics=[opinião]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]