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As vagas pandémicas

As vagas pandémicas

Suspendamos, por enquanto, dúvidas e crenças e consideremos apenas as certezas: as próximas vagas são já as da pobreza e da desigualdade.

Não sabemos se vai haver uma segunda vaga da covid-19. A sua previsão e negação têm sido igualmente anunciadas. O nível de incerteza científica é grande e muitos se precipitam com conjecturas na ânsia de acertar. A convicção de que não sobrevirá parece ser ainda maior a avaliar pelo quotidiano português, imune ao elevado número de novos infectados. Suspendamos, por enquanto, dúvidas e crenças e consideremos apenas as certezas: as próximas vagas são já as da pobreza e da desigualdade.

Havíamos percebido há muito que a crise sanitária conduziria a uma crise económica, que degeneraria numa crise social. Agora sabemos que às vítimas da doença se somam as do desemprego e as da insolvência pessoal e familiar. Todas carecem de atenção e cuidados adaptados às suas necessidades. Todas exigem a intervenção do Estado; e todas beneficiariam da nossa solidariedade.

O primeiro alerta foi lançado pelo Banco Alimentar e por tantas outras IPSS confrontadas com um número crescente de pessoas recorrendo ao seu auxílio. O Banco Alimentar registou mais 60 mil pessoas carenciadas de diversas condições sociais e níveis de educação que, com empregos precários ou profissões liberais paralisadas, perderam os seus meios habituais de sustento. A este inicial indicador outros, lamentável e inexoravelmente, se somam como o do desemprego que, em Abril, subiu 14,1% em relação a Março e 22,1% em relação ao ano anterior. Os 2,2 milhões de portugueses que há cerca de um ano viviam no limiar da pobreza serão hoje mais, tal como os 21,7% de europeus na mesma situação tenderão a aumentar. E se um quinto da população do rico continente europeu vive em risco de pobreza, que dizer do resto do mundo?

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), cuja estimativa de pessoas em crise de insegurança alimentar no mundo, prévia à pandemia, era de 135 milhões, com 27 milhões na iminência de passar fome, prevê agora que estes números possam triplicar até Setembro. Com efeito, a produção agrícola vem diminuindo e os preços aumentando. Por sua vez, o Banco Mundial prevê 500 milhões de novos pobres em 2020, quando este número da vergonha vinha diminuindo há 20 anos. Mas são muitos os trabalhadores não qualificados que perdem toda a actividade remunerada e se tornam refugiados internos.

Mais de 90 países pediram ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI) desde o início da crise. Porém, com os gravíssimos problemas internos de cada um dos países desenvolvidos, nomeadamente dos Estados Unidos, com um recorde de desempregados desde a Grande Depressão de 1929, a disponibilidade para a cooperação reduz-se perigosamente enquanto as necessidades dos países em vias de desenvolvimento se agravam. Não é apenas a solidariedade internacional, de que muitos países dependem, que falha, mas é também o seu potencial comercial que se anula na ausência de compradores.

A pandemia sanitária é igualitária. As pandemias económica e social, porém, não; elas são discriminatórias, afectando mais os que já estavam pior. É tempo de ir percebendo que a pobreza material de uns empobrece moralmente todos, e que a desigualdade de alguns desintegra a comunidade de todos

Esta vaga de fome, esta pandemia de pobreza, avoluma a vaga de segregação e gera uma pandemia de desigualdades. Porque os pobres são sempre outros. E estes diferentes tornaram-se mais desiguais. Os bairros pobres da Grande Lisboa ficaram mais distantes. São vítimas da crise sanitária, da económica, da social e até da luta política quando a designada “cerca sanitária” deixa de ser uma medida de saúde pública para se tornar num símbolo de estigmatização social.

É verdade que o coronavírus é democrático e não diferencia entre género ou classe, etnia ou nacionalidade. A pandemia sanitária é igualitária. As pandemias económica e social, porém, não; elas são discriminatórias, afectando mais os que já estavam pior. É tempo de ir percebendo que a pobreza material de uns empobrece moralmente todos, e que a desigualdade de alguns desintegra a comunidade de todos. E no progresso desta pandemia da pobreza e da desigualdade ecoa aquela metáfora de que estamos todos na mesma tempestade, todos no mesmo mar…, mas em embarcações diferentes, sendo que alguns já só têm a cabeça à tona de água e sem colete de salvação.

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