www.sabado.ptleitores@sabado.cofina.pt (Sábado) - 5 jun. 07:00

O serial killer do monte

O serial killer do monte

Não nos passava cartão mas sorria e acenava. Deduzíamos que, pelo menos, não lhe éramos insuportáveis - Opinião , Sábado.
Cheirava sempre a verão ali. Os invejosos diriam que aquela casa era um anexo, que o caminho para lá custava uma fortuna em amortecedores, que as melgas pareciam Boeings 737 carregados de munições e que a água do chuveiro não queria ter nada a ver com a pressão. A nós cheirava-nos a verão – daquele que põe o carvão a conversar com as acendalhas e cozinha um piano que, com umas boas batatas fritas, até parece tocar Schubert.
Quando menos se esperava, o dono do monte, com idade suficiente para ter direito a uma certa paz, aparecia. O homem era um verbo e esse verbo era cuidar – mesmo que o terreno parecesse viver ao deus-dará, ele dava couro e cabelo por ele.
No início, tentávamos o cumprimento de quem é da casa ("Bom dia, sô Manel!"). Não nos passava cartão, mas sorria e acenava e nós deduzíamos que, pelo menos, não lhe éramos insuportáveis. Até ao dia em que nos viu deixar um gato (vadio, atrevido, irresistível) subir para a mesa para receber mais comodamente as nossas festas.
"Vai aí uma festa! Assim habituam-no mal!" Dizer que demos um salto seria pouco. O dono do monte tinha surgido sem aviso e com a língua mais solta que alguma vez lhe víramos. Pedimos desculpas, enxotámos o gato a quem depois, às escondidas, pediríamos também desculpas, e desejámos desaparecer.
Naquela noite, comentámos o sucedido com quem não tinha assistido a ele. Entre um copo de vinho e outro alguém brincou: "E se ele fosse um serial killer?" Pedi que parassem – dou um toque no sonambulismo e nunca ultrapassei histórias como a da estrada de Sintra e da mulher que pedia boleia. Para isso, disse-lhes, não contassem comigo.
Na manhã seguinte, com o sol nasceu o bullying típico de quem descobre que temos uma fraqueza: "Então, sonhámos com o serial killer?" Nesse momento, em mais um movimento de ninja, o senhor Manel surgiu do ar sem fazer vento. Trazia um cesto de tomates para nos oferecer. Nem tive de pensar porque ouvi logo um sussurro: "E ainda por cima é um serial killer com tomates!"
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